domingo, dezembro 13

A bicharada do Aurélio

Era tão do Aurélio aquele modo de entrar no café a esfregar as mãos e ao encarar os amigos levantar os polegares ao modo de vitória, que da vez que chegou sem o fazer nenhum se atreveu a comentar, de receio que o cardiologista lhe tivesse dado más notícias. Ele próprio reparou, e apontando o coração forçou um sorriso irónico, garantindo que estava tudo direito, tudo no seu lugar, a única coisa… Bom actor arrastou a pausa, mas só o preciso para não aborrecer, e soltou um inesperado desabafo:

- A bicharada vai dar cabo de mim! 

Ninguém se assustasse, não vinha infectado e bicharada uma maneira de dizer, porque o que lhe estava a dar dores de cabeça era o problema das traves da casa que herdara do tio e onde agora vivia. Não se tinha dado conta, mas o caruncho tinha-as comido a tal ponto que no dizer do Matias, o empreiteiro, um dia destes aquilo vinha abaixo, até lhe recomendara que era melhor deixar-se de arrufos, fazer as pazes com a mulher e voltar para casa, porque ele não se responsabilizava, e dizia-lhe mais, aquilo estava pelo negro de uma unha, principalmente agora com os camiões da cimenteira a passar por ali.

- Não é pra te assustar, mas o telhado vai mesmo abaixo, e as paredes não aguentam.

- Achas que sim?

- Mais que certo, e digo-to porque não quero ficar com a tua morte na minha consciência.

O Zé Matias provavelmente tinha razão, a parede das traseiras começava de facto a abaular, mas também era verdade serem ele e a Noémia primos direitos, criados juntos, muito chegados, ninguém lhe garantia que não houvesse ali tramóia para o levarem a perdoar, que águas passadas não moem moinhos etc. e tal.

O caso é que nem o perdoar estava no seu feitio, nem queria que dissessem "Lá vai o Adérito, corno calado e contente!" Por isso, quando o zunzum lhe chegou aos ouvidos e depois apanhou as mensagens no telemóvel dela não esteve com meias medidas. A vontade que tinha era pô-la logo no olho da rua, não o fez por causa dos miúdos e então saíra ele.

Tudo se encrencou quando se soube que ia tratar do divórcio. A sogra apareceu-lhe numa choradeira, não fizesse aquilo, a Noémia não merecia, eram as más-línguas, seria uma desgraça. Não lhe respondeu, mas agora estava tudo mudado, se o telhado fosse abaixo ficava sem casa e teria de pagar a alimentação para as crianças, ia perder o carro. De facto tinha visto as mensagens mas hoje em dia anda tudo às avessas, não se pode confiar, é tão fácil fazer com que a mentira pareça verdade e a verdade mentira.