quinta-feira, agosto 20

Quem somos?

"Quem somos? Um pequeno povo que, lançado na estranha aventura dos Descobrimentos, é quase aniquilado por uma empresa que em muito excede as suas capacidades. A partir do fim do século dezasseis vai anemiando, fugindo do país como quem foge dum lugar de catástrofe. Feitos individuais perdem o brilho e a importância, submersos na névoa do desastre. São um momento tirados da sombra, mas para ela voltam: em 1602 um Bento de Góis atravessa o Himalaia, fazendo em cinco anos a viagem de Goa à China; em 1624 um António de Andrade penetra no Tibete; quase duzentos antes de Livingstone um padre Lobo deita-se a pé à descoberta do interior da África, e em 1531, escassos três decénios após o descobrimento do Brasil, um Pero Lobo vai, também a pé, explorar o sertão brasileiro.

Não se tratava de feitos de armas, e por isso não foram cantados. O que esses e outros acumularam de conhecimentos geográficos aproveitaram-nos os que, melhor equipados e menos cegos de paixão, souberam cimentar as conquistas e com elas financiar o seu próprio desenvolvimento e progresso.

Um profundo sentimento conservador vai marcar os governantes portugueses daí em diante, recusando tomar conhecimento da evolução social e económica. Todo e qualquer vestígio de mudança, pequena ou grande, será por eles interpretado como um perigoso ataque ao seu status de minoria privilegiada e poderosa. Vão apoiar-se na Igreja, na Inquisição, nas Polícias. Os reis não hesitam em atirar bocados do país para o enxoval de princesas com quem, doutro modo, ninguém quereria casar. Empenham tanto a nação que, em fins do século 19, Portugal não tem crédito, nem garantias para oferecer, fica reduzido ao que lhe querem emprestar alguns particulares a juros de usura.

A cegueira dos governantes, não somente a de Salazar, mas da quase totalidade dos que o precederam, vai dar lugar a que, passada a segunda metade do século 20, se constatem em Portugal situações medievais.

Para que ninguém tenha de se amargurar com as que são tristes ou trágicas, mencione-se como símbolo de todas elas o arado de madeira, herdado dos romanos, e com que ainda hoje lavramos as vertentes.

Já atrás se disse: os primeiros emigrantes partem em 1425 para a recém-descoberta ilha da Madeira. São algarvios. A seguir, os habitantes das regiões mais densamente povoadas do norte do país vão procurar melhor fortuna nas colónias do Oceano Índico. A palavra fortuna escreve-se aqui com o sentido restrito de destino, pois não eram esses pobres que iam enriquecer no comércio, o qual era dado como privilégio aos ricos e aos fidalgos. Ficava-lhes o servir no exército deste ou daquele governador, a pirataria, ou, acossados pela fome, o alugarem-se como mercenários aos príncipes indianos. Como só eram pagos quando lutavam, tudo lhes faltava: a comida, o vestuário, a habitação. Alguns alistavam-se mesmo sem armas, as quais tinham de pagar do seu bolso, na esperança de tomar as do inimigo, vivendo no eterno sonho de que o saque os haveria de enriquecer e lhes permitiria um dia caracolear nas ruas , sobre mula de luxo, seguidos pelo bando de escravos.

A emigração, porém, não se fez apenas para o Oriente, tendo como mola o ganho fácil. As riqueza de lá recebidas cabiam a poucos, ou iam pagar ao estrangeiro aquilo que o país, sofrendo de loucura, deixara de produzir. Tudo o que abastecia as armadas e o que era negociado na Índia tinha de ser importado, bem assim como os géneros de primeira necessidade. No país não se fazia por pão, não se pescava, da Flandres vinha o peixe, a carne salgada, o centeio; os relatos da época falam de que de fora vinham até as galinhas e os ovos.

A propriedade concentrava-se nas mão da nobreza e da Igreja. Os mosteiros e as ordens de cavalaria possuíam cerca de um quarto da superfície arável do país, mas preferiam deixar as terras em baldio a alugá-las a preço e condições aceitáveis para os camponeses .

Assim, antes de partir para a Índia, os provincianos demandavam Lisboa, na esperança de encontrar trabalho na construção de navios ou na carreja da alfândega e da casa da Índia.

Esperança baldada, pois trabalho não havia para todos e o remédio era o alistamento ou o embarque ao deus-dará. Além disso as epidemias da peste eram um flagelo quase permanente, ceifando as vidas. Os surtos de  1491,1502, 1506, 1513 e 1521 deixaram memória, a eles se juntando os terramotos que afectavam particularmente a capital. Antes do terrível tremor de terra que destruirá Lisboa em l755, há um em 1512, durante o qual o rio Tejo inunda parte da cidade. Em 1531 a terra treme durante cinquenta dias, e em 1551 duas mil pessoas ficam sepultadas nos escombros.

Os portugueses fugiam também para Castela, principalmente para Sevilha, porta de entrada do comércio das Américas e onde, segundo um historiador, um quarto da população era gente nascida em Portugal. "Em Madrid e nas províncias limítrofes, Estremadura  e  Castela-a-Velha o afluxo de portugueses era considerável, sendo eles na maior parte os que, nas povoações, exerciam ofícios mecânicos". 

......................

in Portugal, a Flor e a Foice - Quetzal, 2014