terça-feira, julho 14

Um retrato


"Carlos Munim não é de saudades ou recordações. Em conversa, mesmo se a frase não tem cabimento, gosta de repetir:«Prà frente é que é o caminho», dando ideia de que aquilo se lhe tornou mantra ou exorcismo. De facto, pudesse ele, de bom grado faria uma lavagem ao cérebro, safando o tempo, desde a infância ao dia em que alugara o escritoriozito no Porto e, finalmente, se sentira nascer para o mundo. Pouca mossa lhe fazem os desaires, os reveses, a cadeia, os vexames, parte que são do caminho da vida, e esse, sabe-o bem, só de longe a longe é de rosas. O passado, contudo, impiedoso no assalto, escolhe as horas em que o sente indefeso, as noites em branco, os momentos de derrota, e tortura-o com a visão detalhada do que não consegue esquecer. O ódio pela terra em que nasceu tem a marca da psicose aguda. Não saberia explicar em que hora e por que motivo cresceu nele aquela desmedida aversão pelo lugar e pela gente, pelas arribas, os montes, a secura, os pedregulhos, o isolamento, o rio, tão lá no fundo que raro o tinha avistado. Garoto de nove ou dez, o pai a sair do palheiro no passo lento das pernas cambadas, o cajado a servir de bengala.- Que estás aí a fazer, ó morcão? A pergunta não pedia resposta, era só insulto, ameaça, aviso para guardar o longe, que chegando-lhe ao alcance era bofetada certa, ou pontapé como os que dava ao cão para lhe sair da frente.
- Ó palerma, vai buscar a calagouça.
Se lha entregava segurando a lâmina, vinha o berro: - Sabes como se agarra uma calagouça, ó merdas? Pegava-a pelo cabo, julgando fazer direito, sofria o tabefe e evitava olhar, temeroso dos puxões com que quase lhe arrancava as orelhas. Passados os dezasseis, já forte, e o velho mirrado pela doença, acabara-se a pancadaria, os insultos tinham baixado de tom, mas nem por isso lhes faltava sarcasmo - «Não vales o que comes» -  e se apanhava a mãe a passar-lhe uns trocos, vingava-se nela, dobrando as bofetadas."

in "Mentiras & Diamantes" – Quetzal, 2013