quarta-feira, julho 29

O presunto de Lamego

"O meu gosto seria participar em conversas que agudizam o intelecto e os sentimentos, conhecer daqueles espíritos superiores que, com ciência e sageza, explicam a diversidade das gentes, o presente do mundo, o seu futuro, os mistérios do Além.
Esse seria o meu gosto. A minha realidade é a do conhecido que, ao entrar no café, me agarra sussurrando: - Gostei daquela história da gaja e do gato.
Ao mesmo tempo que me liberto do abraço, sorrio, encolho os ombros, tenho uma vaga ideia do que quer dizer. Mas já ele avança a informar que também tem um blogue onde trata “de coisas interessantes da região e faz umas brincadeiras.”
Espero. Vejo-o dar uma piscadela de olho a criar suspense. Embora seja pouca a clientela quer que nos sentemos ao fundo da sala:
- Pois escrevo no blogue umas brincadeiras, e talvez por causa disso vão lá umas gajas. Quer você saber ...
Salva-me um outro conhecido que entra, e a quem aceno com urgência fingida. Desculpo-me. Despeço-me. O que chegou, talvez porque começa logo a contar que foi ao médico, por causa daquela pontada que lhe dá no lado esquerdo, não estranha o meu modo. Veio para tomar o cafezinho. Descafeinado. Com um pastel de nata. Hábito velho. E um cigarrinho, quando fumava. Felizmente perdeu o vício. Faz muito mal. Começou aos dez anos. Foi sorte não ter dado cabo dos pulmões. Antes do almoço ainda vai à farmácia, a ver se lhe aviam a receita dos outros comprimidos. E tem de passar pelo Sousa, que ontem foi à Espanha buscar presuntos. A Fermoselle ou a Zamora, não sabe ao certo. Que o Sousa é um bocado assim, sempre com segredos.
- Melhor que o de Lamego. Você gosta de presunto?
Ah! Participar em conversas que agudizam o intelecto e os sentimentos, conhecer daqueles espíritos superiores."


in Pó, Cinzas e Recordações - Quetzal, 2015