terça-feira, maio 26

O desaparecer de Lisboa

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É texto com um quarto de século. Posto aqui noutra altura repito-o hoje por razões de nostalgia.

Recordações de Lisboa tenho eu de sobra, tantas que não preci­so de visitá-la para me sentir transportado das ruas largas do Areeiro que, em meados da década de 40, quando pela primei­ra vez a vi, era um extremo da cidade, para as ruas ricas e sombrea­das do Restelo, um outro extremo.
Guardo recor­dações de Alcân­tara e do Rato, da Praça do Chile; dos becos da Moura­ria por onde andei de patru­lha; das casas de fado em Alcântara e no Bairro Alto onde toquei guit­arra; do quartel na colina da Graça, onde éramos talvez trezentos a dormir na enorme caserna que fora alojamento de frades. Para minha sorte tinha-me cabido lugar junto de uma janela, e quando o clarim tocava à alvorada, às cinco e meia da manhã, ao abrir dos olhos logo a cidade se me oferecia em panorama.
Ficaram-me memórias do Campo de Santana e do Campo Gran­de, da Lapa, da Estufa Fria. Do Parque Meyer, do Saldanha. Do Jardim Zoológico não tenho recordações de animais, mas dos amores furtivos a que obrigava a moralidade de então. E quando vejo a Torre de Belém lembro que nesse tempo o guarda, a troco de cem escudos, emprestava a chave do terraço do monumento. Aí ao ar livre, vendo passar os navios no Tejo, faziam-se cópu­las que, devido à solenidade do lugar e aos nervos da ocasião, se tornavam duplamente históri­cas. Uma hora depois - raro as horas voltariam a ser tão curtas! - o guarda batia impiedosa­mente à porta, e era pagar de novo ou sair. Modelo de dis­creção, quando a dama descia a escada ele volta­va as costas, 'para não ver'.
Fui a touradas no Campo Pequeno. Com lampiões e manjeri­cos festejei Santo António. Conheci as tertúlias literárias do Café Gelo, do Nicola, d'A Brasileira. Com o respeito que nesse tempo me mereciam os mais velhos, baixava os olhos ao cruzar com Aqui­lino Ribeiro ou João Gaspar Simões por entre as mesas da livraria Bertrand. Marchei em paradas marciais na festa do primeiro de Dezembro, clamei em arrua­ças de futebol. No ecrã do Tivoli Humphrey Bogart ensinou-me o seu modo de fumar e o tom sarcasticamente nasalado de dizer a propósito e a despropósito: 'Stop it, baby!'
Nos dias ruins comi nas tabernas da Rua da Graça e no João do Grão da Rua dos Correeiros, a casa de pasto que ao contrário de hoje não conhecia luxos. Sentava-se a gente em bancos corridos de madeira rude, mesas comuns idem, para meia dose do prato único de bacalhau e grão-de-bico acompanhado de cebola crua, um papo-seco e um quar­tilho de carrascão do Cartaxo. A clien­tela? Soldados em dia de pré, putas em hora de sorte, mendigos a quem à porta das igrejas tinha caído esmola abonada.

No Areeiro e nas avenidas novas de Alvalade começavam a apare­cer os prédios de dez andares, duma arquitectura fascisante e triunfalista. Mas no resto a cidade permane­cia harmoniosa e baixa, como no século dezoito a tinham deixado os arquitectos de D. João V e do Marquês de Pom­bal. As mansões luxuosas rodeadas de jardins, construídas pelos mili­onários dos fins do século dezanove, enfeita­vam as aveni­das, e lembro-me de por vezes ter parado diante das graciosas cercas de ferro fundido, a fantasiar a vida que levariam os vultos que, por vezes, se aper­cebiam num desvão de janela ou no alto das escadarias.
Palmilhei a cidade de ponta a ponta. Por curiosidade e pelo gosto de ver ao vivo o que para mim, até à primeira visita, tinha sido apenas uma cidade 'literári­a'. As ruas, os monumentos, a agitação da vida e a largura do Tejo, só os conhecia dos livros em que Fernão Lopes, Eça , Camilo, Oliveira Mart­ins, Pessoa, outros meno­res, me tinham fornecido a moldu­ra em que eu 'so­nhara' a minha própria Lisboa. E quando pela primeira vez pude con­fron­tar o sonho com a realidade, a capi­tal não me desiludiu, mas curiosa­mente também me não maravil­hou. As dimensões, o caste­lo, o Rossio, o fausto do Chiado, o Mar de Palha, as perpendicula­res da Baixa, os becos da Mouraria, tudo isso era como eu tinha lido.
Assim, talvez porque o quadro real tão bem se sobrepun­ha às linhas da imaginação, o espírito inquieto da minha juventu­de queria emoções fortes. Encontrei-as na noite. No Texas-Bar do Cais do Sodré, onde eram tão violentas as zaragatas que, para sua segurança, os músicos tocavam perto do tecto, num estrado que figurava a metade dum caí­que. Encontrei-as nos bordéis das ruas do Loreto, da Misericórdia e da Glória, principalmen­te nesta última, onde Madame Blanche tinha conse­guido dar ao seu esta­belecimento uma fama que se estendia pelos continentes.
Emoções fortes também, mas daquelas que não se mostram, tão fundo penetram elas na alma, descobri-as primeiro no Estribo, taberna na traves­sa da Queimada, diminu­ta a ponto que os fadistas tinham de cantar à porta da cozin­ha. Depois as amizades levaram-me para a Parreirinha de Alfama, a mais antiga das casas de fado do bairro, onde também se comia, e que nessa altura, à semelhança do João do Grão, não passava duma tasca de bancos corridos e mesas de pinho tosco.
O público eram os homens duros, emi­grados dos campos das Beiras para a estiva das docas da Marin­ha e do Terrei­ro do Trigo, ambas logo ali do outro lado da rua.
No tempo dos muçulmanos Alfama tinha sido o bairro aris­tocrático da cidade, mas pouco demorara a tornar-se popular e marítimo. Os judeus instalaram-se nela, expulsos depois pelos cristãos, a gente miúda, os 'manéis do mar', as varinas que no tempo em que as conheci corriam a cidade de pé descalço a vender peixe. Quando a pesca não dava rua iam para ‘o'car­vão' - porque a descarga nos navios car­voeiros faziam-na elas com cestos de cinquenta quilos à ca­beça, prancha acima, pran­cha abaixo, a correr dos porões para o cais. Nas noites quen­tes juntavam-se a ouvir o fado. Não na Parreirin­ha, que para elas e os 'mané­is' era cara demais, mas nos pátios, onde os que tinham jeito cantavam o 'fado vadio'. Vadio por não ter re­gras, e porque às vezes nem de instrumen­tos precisava. Fado es­pontâneo, nascido das dores do íntimo e das misérias do dia, cantado com pouca arte e muito alma. Mas sempre aparecia uma viola, alguém ia pedir emprestado uma guitar­ra, e quando os fadistas para­vam, exaustos de emoção, comiam-se fraternalmente as sardin­has assadas nos fogareiros acesos no passeio.
Na Parreirinha, quando o público se despedia e os fadistas bebiam um último copo, entravam por vezes vultos discretos de homens. Alguns conhecidos da casa, outros estran­hos que, sós ou aos pares, pareciam ter recebido qual­quer palavra de passe e se acomodavam murmurando, como no aguardo de um ritual secreto. Apagavam-se as lâmpadas, ficava apenas um bruxulear de velas, e as mulheres presentes, cria­das, cantadeiras, pareciam diluir-se na sombra dos recantos.
Os tocadores retomavam os instrumentos, um fadista des­conhecido saía do público e o seu cantar, cheio de emoção, apunhalava até ao mais fundo da alma. Seguia-se-lhe outro, outro ainda, e nenhum deles recebia palmas. Porque aquele era o fado secreto, proibido, o fado do amor maldito dos homens que ali na penumbra entrelaçavam os dedos, trocavam carícias furtivas, que a tremer de paixão juntavam os lábios num beijo.
Uma madrugada, em meio de um fado, quando a porta se abriu deixando passar um homem alto e magro, senti que pelos presen­tes perpassava como que um tremor. Perguntei. Disseram-me que era António Botto, o poeta que Pessoa tinha admirado, de quem fora amigo e sobre quem escrevera revelar-se ele 'no seu livro Canções (1922) um dos tipos mais perfeitos e mais íntegros do esteta que se podem imaginar.'
Nos meus verdes anos eu tinha lido os seus poemas, sem de facto os compreender, ressentindo neles mistérios sombrios que ora se me afiguravam da carne, ora da mente. Finalmente puse­ra-os de parte e, para sossego do meu entendimento, copiara num cader­no a parte do prefácio de Pessoa que me parecia sintetizar o livro.
António Botto, o poeta que em 1959 iria morrer em São Paulo, abandonado e pobre, fora sentar-se a dois passos de mim, e recordo que num daqueles entusiasmos excessivos que a juven­tude tem, me deu vontade de lhe pedir que me explicasse a sua poesia. Desse faux pas, felizmente, salvaram-me por certo em partes iguais a timidez da minha natureza e a solenidade quase religiosa que parecia envolver tudo ali.
Ouviam-se os fadis­tas, mal se distinguiam os vultos em redor das mesas, curiosa­mente não se bebia nem comia. Mais tarde, como que obedecendo ao sinal de um régisseur invisível, um a um os presentes tinham começado a sair, deixando algum dinheiro na caixinha perto da porta.

Nessas madrugadas, quando eu próprio saía, surpreen­dia-me sempre a luminosidade da alvorada, surpreendiam-me os ruídos e os pregões da cidade, que acor­dava para uma vida triste mas orde­nada, de passeios limpos, um polícia a cada esquina, de varredores que ao longo do dia incessante varriam, incessante­mente refrescavam a rua onde o sol iria queimar.
Na minha ingenuidade e ignorância passava-se o mesmo em toda a parte. Lisboa era uma metrópole, a minha. Paris, Lon­dres, Madrid, Berlim e Moscovo seriam maiores, mas com certeza também nessas cidades longínquas se cantava uma forma de fado. E nelas outros jo­vens, meus irmãos descon­he­cidos, iam pelas ruas iluminadas por outras alvoradas, sonhando um mundo em que só haveria alegria, onde tudo e todos seriam unos, onde os poetas não precisari­am de se esconder para amar.

A nossa separação durou catorze anos. Quando voltei a vê-la, umas horas à noite entre dois aviões, não a achei mudada. De dentro do táxi ia enchendo os olhos de certezas. Tudo me parecia igualmente limpo, igualmente triste. A guerra nas colónias só existia num ou noutro cartaz, onde soldados afaga­vam crianças negras e os slogans garantiam a vitória próxima sobre o Mal e uma paz duradoura. Em cada esquina havia agora dois polícias e os varredores continuavam a fazer a limpeza com intenso zelo.
Na visita seguinte, quatro anos mais tarde, com tempo para palmilhá-la, Lisboa sur­preendeu-me. Ainda limpa, mas desolada, quase vazia de gente. Aqui e ali um prédio em ruín­as, aqui e ali um café fechado, a ponto que em vez de avivar recordações, me tomava a impressão de as ir perdendo a cada passo. O Estribo mudara de nome, frequentavam-no sobre­tudo americanos vozeirentos bêbedos de uísque. A Par­reirinha de Alfama era doutros donos, tinha toalhas na mesa e ar condici­o­nado. O horizonte norte da cidade era maculado pela torre do hotel Sheraton, que do alto dos seus vinte e três andares trompete­ava a chegada e a vitória do novo-riquismo.

A revolução, o caos que se lhe seguiu e a democra­cia, transformaram Lisboa radicalmente, e ela surge-me hoje apenas como um esqueleto de lembranças. O castelo e o quartel da Graça são dois marcos que permanecem. A torre de Belém com certeza resistirá outros quatrocentos anos. Nascidos do terra­moto, o Ter­reiro do Paço, o Rossio, e as ruas da Baixa conti­nuam símbo­los imperecíveis da cidade. Mas por culpa das mu­danças, dos sonhos que vivi e dos muitos mais sonhos com que me enganei, ela tor­nou-se para mim um lugar vazio, um lugar que me roubaram.
Passo pelas ruas e praças que me foram queridas com o senti­men­to de me encontrar em locais que perderam a alma, ou que o correr do tempo dessacralizou. E embora esse sentimento verda­deiramente me magoe, simultaneamente sei que assim não é. O que mudou tinha de mudar. Os monstros arquitectónicos dos centros comerciais e das sedes dos bancos, infalivelmente teriam de chegar, como expressões de uma actualidade que só toma conhecimento do romance, da nostalgia, da beleza e da ilusão como facto­res de comércio.
O sujo e a banalidade das ruas são o espelho da época em que vivemos e nada têm a ver com os sonhos que eu e outros julgá­mos realizar. Nem com os sonhos que a juventude de agora sonha. E quando Lisboa me desespe­ra revejo-me nos mais moços, consolo-me dizendo-me que sempre foi assim. Que eles vêem o que eu não já não sei ver, porque para as gerações que passam toda a mudança é um drama e para as gerações que nascem a esperança é eterna.