segunda-feira, abril 20

A porta da casinha

O dele é o caso clássico das desilusões que azedam o dia de tantos homens a entrar na velhice: a cabeça ainda cheia de sonhos, o corpo a fraquejar, a sociedade a repreendê-los porque teimam em não sair do caminho e deixarem passar os que estão na força da vida, a família a olhá-los de um modo que esconde mal a impaciência, mostrando o sorriso que parece desculpar os sinais de distracção, mas de facto equivale ao raspanete autoritário dos que gostam de mandar.
O Zeferino Açoreira, setenta feitos no passado Janeiro, aparece no café quase todas as tardes por volta das seis, junta-se aos amigos, e mesmo que um ou outro insista, porque faz anos, o Benfica ganhou, o patrão lhe deu aumento, fica sempre pelas duas imperiais.
É de longe o mais velho, pouco inclinado a opiniões definitivas e gosta mais de ouvir do que de falar, nos muitos anos de convívio nunca o viram exaltado ou radical, mas sempre comedido nos juízos, pronto a aceitar e a compreender.
Razão de sobra para no sábado passado ficarem de boca aberta ao ouvi-lo anunciar que estava ali pela última vez, voltava à aldeia, em Lisboa nunca mais punha os pés. E ao contrário do seu normal entrou a explicar que ia sozinho, era o melhor pra todos, assim a mulher e as filhas não precisavam de se aborrecer com o seu desleixo, nem tinha ele de lhes aturar as manias.
Ficaram a entreolhar-se calados, absorbendo a novidade e a perguntar-se qual poderia ser o motivo de uma decisão tão drástica, pois duma maneira ou doutra todos somos desleixados e no que respeita as manias das mulheres estamos conversados, às vezes parece que têm o monopólio.
Foi então que o Zeferino, talvez por sentir que devia uma explicação, perguntou se algum deles também de vez em quando deixava aberta a porta da casinha.
- Da casinha? – estranhou o Sérgio, que é de Angola e tem outro vocabulário.
- Da retrete ou do quarto de banho! – disse alguém.
De facto sim, alguns faziam isso mas não era desleixo, antes o hábito de quando eram miúdos e as mães queriam a porta aberta para ver “o que estavam a fazer lá dentro”. A verdade é que não parecia motivo para tanta zanga com a família, era ter paciência e de vez em quando fechar a porta.
- Ai sim? E as manias delas? Quero fazer a barba, não saem do espelho! Vão às compras,
tenho de ficar por causa do cão! Estou a ver um programa mudam para a Cristina…
Ia levantar-se, furioso, o Cruz agarrou-lhe o braço, fê-lo sentar: - Calma, amigo! Elas falam muito de revolução, mas ainda somos nós quem manda!