sábado, janeiro 25

Trono de rei e senhor

A recordação vem sem ser chamada, há ocasiões em que se sente como quando era miúda e ia ao cinema para ver os filmes - ela ainda diz “as fitas” –  que não eram tão bonitos como agora, mas por qualquer razão lhe pareciam mais verdadeiros. Devagarinho iam-se apagando as luzes, ficava tudo às escuras e de repente tornava-se personagem, era ela quem vivia aquilo, sentia-se desnorteada quando a história chegava ao fim e as luzes voltavam a acender.
Está virada para a televisão, mas é só pelo ruído, o que lá mostram não lhe interessa e os seus olhos também pouco distinguem. Desde que o Jerónimo faleceu senta-se no cadeirão ao pé da lareira, o cadeirão que para ele tinha sido trono de rei e senhor, mandando dali com grunhidos ou sacudidelas dos dedos que exigiam presteza e obediência, fosse para lhe trazer o correio, os comprimidos, a camisola, ou só para que se aproximasse, despedindo-a com outro aceno, esquecido do que pedira, algumas vezes num berreiro de doido, não fosse esquecer que ali  ainda era ele quem mandava.
Com a pinguita de vinho e o calor da lareira vem-lhe a modorra, começam as visões, é como se voasse no tempo, revive cenas­ que julgava esquecidas, mas logo desperta em sobressalto na confusão de ter duas vidas, aquela em que envelheceu e uma segunda em que se desconhece, onde havia esperança, o tempo não passava, ela para sempre a Margarida de vinte anos e um futuro de alegrias.
Sabe por demais que aquilo não é sonho mas o remorso de se ter sujeitado, escolhido a submissão, sofrendo não ter filhos, perdida a conta dos desmanchos, ele a assistir para ter a certeza de que o não enganava. Escolheu vergar-se, nunca lhe quis mal e são sinceros os padre-nossos que reza pelo descanso da sua alma, só se pergunta que praga lhe rogaram para que tivesse de ser assim o seu destino, aos olhos do mundo sem razão de queixa, penando um vazio como só conhecem os que aceitam viver na sombra, sem vontade própria e normais na aparência, mas movidos pelos cordelinhos que os tornam fantoches, obrigados ao sorriso que trai a cobardia.
Os anos e a fragilidade fazem-lhe sentir que o fim não deve tardar, mas a morte não a assusta, tão-pouco receia o que a aguarda na vida eterna em que acredita, mesmo que tenha de pagar por ter escolhido viver sem vontade própria. Medo de verdade, tão grande que a asfixia, é  o que sente de manhã ao acordar, sabendo que não escapa ao tribunal que tem dentro de si e a obriga a ouvir a acusação, mas nunca lhe lê a sentença.