segunda-feira, setembro 30

Nótulas (2)


Há ocasiões, como hoje, em que tenho a impressão de que a actualidade me baralha e asfixia, a ponto que me dá vontade de fechar os olhos e os ouvidos, desligar a aparelhagem, e em pensamento ir de volta para onde sempre me sinto bem e em paz,  sobre o qual há anos escrevi assim:

UM LUGAR ERMO

Como há muito cheguei à idade em que se olha mais para o passado do que para o futuro, ocorre-me com frequência ter ideia de que sou transportado para um tempo que foi, e isso de um modo que não se assemelha a visão ou fenómeno de memória, antes parece ser causado por uma estranha e intensa vontade de reviver. Esses momentos incluem, por vezes, como que a realização de desejos insatisfeitos, ou proporcionam ocasiões nunca antes vividas, e assim, tornado outro, me encontro a semear uma leira ou a lavrar uma encosta, segurando um arado dos de bico de ferro; vejo-me a espalhar superfosfato que tiro de sacos de serapilheira com a marca da CUF; vindimo ou apanho azeitona; estou à espera do comboio na estação de Carviçais, ignorando o que me trouxe, mas atento a que a garotada não vá mexer no que tenho nos alforjes do macho que comprei a um cigano de Santiago.
São desatinos de pouca dura, relâmpagos, e não me preocupam por aí além nem vejo neles sintoma de doença, interpreto-os como uma forma de remorso, penitência que talvez me caiba por não ser o transmontano que devesse ter sido, ou castigo por tão intensamente me querer liberto da terra a que pertenço, de não ter partilhado com ela, e com os que nela tiveram de ficar, as dores, os sacrifícios, as decepções dos que são esquecidos e a quem é negado o que lhes cabe na prosperidade da nação.
Porque também não acerto em descobrir quanta parte de mim é genuinamente e por inteiro transmontana, ou em que medida o meu sentir, o que vi do mundo, e o que nele tenho passado afecta o meu julgamento, tendo a refugiar-me na memória, embora ciente de como ela pode ser traiçoeira e capaz de extremos, tanto na capacidade de alindamento como na distorção da perspectiva, sobretudo no que toca a misérias passadas e situações dramáticas.
Desse modo, em busca de algum equilíbrio mental e sentimental, quando me vejo presa do fenómeno acima referido, esses relâmpagos de vivências fantasiadas, procuro refúgio na paisagem, vou para os montes que conheço desde a infância, escolhendo aqueles onde desde tempos imemoriais nada mudou, e que só um titânico emprego de força ou colossal terramoto conseguirá um dia transformar ou destruir.
Do meu poiso favorito não direi o nome nem revelarei o local, baste assinalar que é inóspito, temeroso no aspecto e no negrume, com muralhas rochosas que lembram as de um castelo, mas isso só pela verticalidade, pois que eu saiba, na província toda não há fortaleza que as tenha daquela tamanho e altura.
Aqui e ali cresce um arbusto, mas no mais é tudo rocha limpa, desempenada, quase só arestas e ângulos rectos. Mudando de perspectiva dá a impressão de se  ter defronte algo semelhante a um bizarro órgão de tubos rectilíneos, ou estranhas chaminés de fábrica. E porque naquele ermo raro se vê outra bicharada, é grande o contraste que nele fazem os abutres, as águias e as abetardas que lá têm ninho, voando com uma lentidão ao mesmo tempo assustadora e fascinante, pois em tão grande isolamento são presença pré-histórica, levam a imaginar que muitos mil anos atrás já outros terão parado como eu a seguir-lhes o voo, abismados também com a soturna grandeza do sítio que, pela ausência de formas redondas que o suavizem ou arvoredo que lhe dê cor, parece ter sido criado com mau intento por um cataclismo sobrenatural.
Gosto do sítio porque nele encontro silêncio, e uma paz que não é apenas de alívio do espírito, mas me dá um sentimento de pertença, continuidade, de ser um elo numa infinda cadeia de existências.
É, sobretudo, desse sentimento de pertença que sinto falta quando me encontro longe dali, dando-me ideia de ser então outro, alguém com uma sensibilidade diminuída e os interesses passageiros da vida citadina, toda feita de exigências, pressas, rituais e obrigações que lhe atestam a superficialidade. Longe de mim, contudo, querer-me em permanência no ermo que ainda rapaz por acaso descobri, e a que desde então me afeiçoei, pois se esse é por excelência lugar de recolhimento, é também um que parece anunciar ameaças bíblicas.
Daí, agora que estou próximo do fim, se irem tornando cada vez mais espaçadas as minhas visitas, e se para isso argumento com a natural fraqueza das pernas, creio que seria mais honesto se confessasse que, como aquele, há lugares que ao mesmo tempo fascinam e assustam, porque obrigam a confrontos que, sejam elas da vida, da morte, ou da salvação, parecem eliminar todas as certezas.

                                        




sábado, setembro 28

Tudo está nos astros


Com cara de seriedade, a modos de sublinhar que é funda a sua crença naquilo que afirma, o Belarmino costuma dizer que todos nós possuímos uma fé, mas muitos só disso se dão conta em horas de aflição.
Criado numa família nortenha, ainda rapaz deixou de ir à missa, com o 25 de Abril seguiu a moda, foi um esquerdista ferrenho até ao dia em que despertou e também a ele caíram as escamas dos olhos, ao dar conta que na ganância de encherem os bolsos os camaradas não conseguiam erguer o punho.
A desengano foi doloroso, andou anos à deriva, veio-lhe a salvação como que por acaso uma tarde de Julho de 2013. Chamamos-lhe acaso por ignorância, gosta ele de enfatizar, mas o acaso não existe, tudo é predestinado, assim lho provou a turista húngara com quem metera conversa no Rossio, e sem mais nem menos, parecendo que estava a ler a sina, lhe fez revelações que de tal modo o abalaram que quando voltou a si não tinha palavras, só recorda  que a mulher lhe sorriu e com um adeusinho desapareceu.
Esse encontro veio reforçar um sentimento que o tomava cada vez que via na televisão o programa do Professor Marcelo: o de notar neste expressões que singularmente o perturbavam, pois por detrás dos sorrisos e da amabilidade, e até dos gracejos, adivinhava como que um prenúncio de forças que se projectavam para lá dos comentários e das imagens.
Essa a razão por que o vê-lo eleito para Presidente da República não lhe foi novidade, tão-pouco o surpreendeu a extraordinária simpatia de que goza, pois de certa maneira tudo isso estava anunciado.
- Estava nos astros – interrompo eu, fingindo seriedade.
- Tudo está nos astros. O que há…
Aguardei que continuasse, mas ele, franzindo as sobrancelhas e a resmungar como se no íntimo estivesse a discutir com alguém, parecia esquecido da minha presença, terminando por encolher os ombros num gesto de desculpa.
- Há ocasiões… – sussurrou – Longe de mim querer voltar ao passado… Claro que um presidente tem poderes, muitos até, só que esses são insuficientes para enfrentar certas situações, por exemplo quando o povo sofre sem esperança de melhoria. E então? Um ditador? Nem por sombras, embora o que tivemos nem fosse dos piores. Um rei à maneira da Espanha não serve, nem sei se estamos preparados para a monarquia. Por isso às vezes penso numa regência. As Forças Armadas faziam uma barrela, os corruptos iam para a cadeia, o país entrava nos eixos, finalmente tínhamos o verdadeiro 25 de Abril.
- E nomeava-se um regente.
- Logo no mesmo dia.