quarta-feira, setembro 3

Trovoada num Agosto de antigamente

A nuvem formou-se de repente, cor de chumbo, destoando no azul limpo do céu.
- Não tarda aí!
As moscas, sentindo a mudança, desalmam-se contra as bestas, contra as crianças que as mães deixaram à soleira da porta na pressa de acudir à lenha, à roupa, de recolher as lonas dos feijões. A rua enche-se de gente, gritos, estrondos, as galinhas voam, os porcos desembestam contra as tábuas das cortelhas, grunhindo de medo, no céu aparece outra nuvem negra e a luz faz-se crua como de madrugada, o vento ruge entre os pinheiros, a poeira escurece tudo.
Caem pingas grossas aqui, além, com o primeiro relâmpago desaba o dilúvio, num pronto a rua tem palmos de água, e ao longe ouve-se o barulho da ribeira, engrossada pelo enxurro que as encostas ressequidas não seguram. Os homens correm atrás dos animais que o medo faz cabrear, guiam-nos à cinturada, cegos, encharcados, rogando pragas, chamando em vão.
À mula ninguém acode. Presa pela rédea a uma argola, escouceia contra a parede, desvairada, sangrando da barbela, onde a serrilha morde a cada empuxão.
- De quem é?
O sapateiro espreita para ver, mas os outros, sentados em torno da banca, não se interessam.
- Ainda se enforca!
E a rir, aprovando, retoma a forma, atento à conversa.
A tia Rita, corcovada, não chega à argola e espreita pela janela, furiosa ao vê-los sentados:
- Vinde cá, ó mandriões! Quem é o desalmado que deixa um animal…
O Abílio levanta-se contrafeito e, sem paciência para deslindar os nós, saca da navalha, corta a rédea, a mula vai rua abaixo toda mansidão.
Brusca como veio a trovoada passou, as crianças brincam nas poças, da bica sai uma água barrenta que não se aproveita, as galihas depenicam na lama com frenesim. No forno ouve-se um grito seguido de um estalo, um miúdo a chorar, uma voz de mulher que diz:- Aprendes!