quinta-feira, novembro 4

O tiro de partida


Faz quanto pode para safar o momento, ou que pelo menos a recordação se torne menos crua e dolorosa, mas nunca o consegue. Pior ainda: em vez de esfumar-se com o correr dos anos a memória agudiza-se, acrescenta detalhes, força-o a prestar atenção a minúcias que não lhe tinham escapado, mas ele escamoteara da lembrança, tentativa cobarde de ignorar o nojo, esquecer a vergonha, a baixeza de se sentir cúmplice voluntário e inimigo de si mesmo, vítima dócil, fingindo que não via nem entendia, querendo fosse doutro o eu que ali tinha estado.

Para seu mal não tinha sido, nem o restaurante fora um palco de teatro e ele um actor, mas tudo real, acontecido, sala cheia, agitação, fumo, ar de festa, gargalhadas, e o que nem de longe poderia imaginar: ia ser dado ali o tiro de partida para o seu destino.

Alma de subalterno, sempre no receio de fazer esperar chegara adiantado, o empregado a indicar-lhe a mesa num tom de falsa cortesia, o olhar a traduzir que pela atitude e o fato não pertencia ali, mas atencioso na vénia, ao puxar-lhe a cadeira, na pergunta do que iria beber.

O patrão a chegar. O gerente em rapapés, mesura à desconhecida. Levanta-se e sorri, aguarda,  recruta em sentido, desajeitado, uma mão na do patrão a outra a puxar a cadeira para a rapariga, incapaz de parar o sorriso tolo. Emília? Repete o nome, fingindo ter ouvido mal. Toca-lhe o braço ao de leve, espera que se sente.

Com o burburinho mal se compreendiam, recorda frases soltas da conversa, tantos anos passados vê-se a reparar no sorriso da desconhecida quando o encarava, forçado e indiferente, como se o estar ela ali fosse obrigação ou tempo de serviço. Referindo banalidades, mesquinhices, um interesse de cortesia.

Que poder o obriga ao martírio? Que feitiço o impede de safar a memória? Porque se nega a compaixão que lhe traria paz e descanso? Conhece a resposta, como sabe por demais que embora nem sempre assim pense, recordar essa ocasião e as consequências que teve, é um mal menor quando o vê à luz dos sessenta anos de uma vida que tantas vezes se pergunta se é a sua ou um engano da reincarnação.