domingo, novembro 28

No que dá guardar

 

Se pudesse faria ouvidos de mercador, porque estarem costantemente a dizer-lhe que é tara, além de aborrecido acaba por ter consequências desagradáveis, a começar pela dificuldade de descobrir alguém que aceite a sua obsessão, e partilhar a vida com um homem que tem um ataque de nervos quando, com rodeios, alguém sugere que viver assim é péssimo para a saúde e enorme o risco de incêndio.

O Gabriel ouve, sorri, às vezes resmunga a fingir que concorda, e muda de conversa, não lhes vai dar o gosto de saberem que o seguro há anos lhe retirou a apólice, e como nunca esteve doente tanto se lhe dá como se lhe deu.

Agradece o cuidado dos amigos, compreende que se preocupem, mas nem por sombras tem intenção de mudar de hábitos. Dá-lhes razão de que é excessivo, e pode ser psicose, mas que lhe há-de fazer, e para que mudar se é assim se sente feliz?

Compreende o pasmo dos que o visitam pela primeira vez e, aberta a porta, se lhes abre também a boca e caem os queixos. Estranho seria se se mostrassem indiferentes ao espectáculo, porque em cada divisão e recanto não são montões, mas torres de revistas, cada uma com o seu registo, empilhadas por tamanho, título e data. No começo também tinha coleccionado jornais, mas deixou, porque amarelavam e com os anos bastava pegar-lhes e desfaziam-se.

Alguns visitantes olhavam aquilo com ironia, outros fingindo pasmo, mas no pensamento a chamar-lhe tarado, perguntando-se como era possível descambar a tal ponto, alguém que no mais parecia em seu perfeito juízo.

Parecia sim, mas estava longe de sê-lo: aquela obsessão de coleccionar revistas, tê-las arrumadas por título, data e tamanho, servia-lhe para canalizar uma outra, a de em tudo exigir ordem e disciplina.

Já aqui referi que na escrita de policiais, quando o autor tem dificuldade com  o enredo, há uma regra que é assim a modos de bóia de salvação, a de que ao abrir uma porta o personagem depare com um cadáver.

Não é aqui o caso, pois há apenas a situação comezinha de quem, solteiro e com fortuna, nunca tinha trabalhado, nem tido em quem mandasse. Foi porque as  colecções o estavam a ocupar quase a tempo inteiro, pôs um anúncio para uma secretária que o assistisse, mas satisfizesse a cem por cento as suas exigências.

Em boa ou má hora o fez, tudo depende, e assim se viu o Gabriel assistido por uma Larysa, jovem farmacêutica de Kiev, super competente nos arrumos, o que muito lhe agrada. Capaz também em artes que ele, solteirão e órfão de mãe ainda bébé, só agora descobre.