quarta-feira, novembro 10

O arado de madeira

 

“Quem somos? Um pequeno povo que, lançado na estranha aventura dos Descobrimentos, é quase aniquilado por uma empresa que em muito excede as suas capacidades. A partir do fim do século dezasseis vai anemiando, fugindo do país como quem foge dum lugar de catástrofe. Feitos individuais perdem o brilho e a importância, submersos na névoa do desastre. São um momento tirados da sombra, mas para ela voltam: em 1602 um Bento de Góis atravessa o Himalaia, fazendo em cinco anos a viagem de Goa à China; em 1624 um António de Andrade penetra no Tibete; quase duzentos antes de Livingstone um padre Lobo deita-se a pé à descoberta do interior da África, e em 1531, escassos três decénios após o descobrimento do Brasil, um Pero Lobo vai, também a pé, explorar o sertão brasileiro.

Não se tratava de feitos de armas, e por isso não foram cantados. O que esses e outros acumularam de conhecimentos geográficos aproveitaram-nos os que, melhor equipados e menos cegos de paixão, souberam cimentar as conquistas e com elas financiar o seu próprio desenvolvimento e progresso.

Um profundo sentimento conservador vai marcar os governantes portugueses daí em diante, recusando tomar conhecimento da evolução social e económica. Todo e qualquer vestígio de mudança, pequena ou grande, será por eles interpretado como um perigoso ataque ao seu status de minoria privilegiada e poderosa. Vão apoiar-se na Igreja, na Inquisição, nas Polícias. Os reis não hesitam em atirar bocados do país para o enxoval de princesas com quem, doutro modo, ninguém quereria casar. Empenham tanto a nação que, em fins do século 19, Portugal não tem crédito, nem garantias para oferecer, fica reduzido ao que lhe querem emprestar alguns particulares a juros de usura.

A cegueira dos governantes, não somente a de Salazar, mas da quase totalidade dos que o precederam, vai dar lugar a que, passada a segunda metade do século 20, se constatem em Portugal situações medievais.

Para que ninguém tenha de se amargurar com as que são tristes ou trágicas, mencione-se como símbolo de todas elas o arado de madeira, herdado dos romanos, e com que ainda hoje lavramos as vertentes.”

 In Portugal, a flor e a foice – Quetzal, 2014.