Já lá vão vinte e tal anos, mas a Adélia conta muitas vezes que tentou, gostava que a bebé se chamasse Elvira, mas com o Valentim não havia discussões nem ele aceitava faltas de respeito à sua autoridade. A filha seria Natasha, e Natasha ficou. Baptismo? Como ela se atrevera a sugerir? Conta que nesse momento, - "Palavra, não estou a exagerar!" - tinha tido a impressão de que os olhos do marido deitavam chispas, e com uma cara assim, o corpo a tremer, até pensou lhe ia dar alguma coisa.
Bom pai, bom marido, vizinho sempre pronto a ajudar, na opinião de muitos o Valentim é um tipo às direitas, e com certeza o seria na de todos, não se desse o caso de que não admite discussões nem aceita evidências que, seja qual for a maneira, contradigam a sua fé. Não lhe venham com o que chamam "provas irrefutáveis" dos males do Comunismo e da crueldade de Estaline. Tudo patranhas do Capital e fake news como agora dizem, sempre com o fim de manter a canga a pesar no cachaço do Povo. Essa é que é a realidade, e talvez não aconteça amanhã, mas a cada dia que passa mais perto ficamos do momento em que a coisa estoura.
- Então é que vão ser elas! E não venham com arrependimentos nem desculpas. As contas têm de ser ajustadas, e não são contas de ontem ou anteontem, mas de gerações!
Quem o não conhecer e ouvir assim vai supor um Valentim capaz de violências ou revolucionário à moda antiga, a fabricar bombas, planeando sabotagens, todo o contrário do bom-serás que ele na realidade é, e do que a filha logo de pequenina se apercebeu, tirando dele mimos de princesa.
Mas como não há bem que sempre dure nem mal que nunca acabe, essa situação de privilégio acha-se agora ameaçada pela entrada em cena do Rafael, o mais recente da dezena e tal de namorados da Natasha a quem Valentim teve de apertar a mão e sofrer as baboseiras. É que este Rafael, também ele comunista, sofre mal o que chama "Comunismo do tempo dos afonsinhos", que com bombas e assassinatos julga poder forçar a transformação da sociedade.
O Valentim ouve, não perguntará ao rapaz se leu o "Manifesto" ou ao menos folheou "O Capital", porque ainda recorda a expressão com que o ouviu dizer que isso está ultrapassado, a Revolução não se faz hoje de baixo para cima, com a ajuda do Povo, mas de cima para baixo, pois só as elites têm o que antes se chamava "consciência proletária".
Assim será, mas duma coisa pode "o menino" estar certo: levar-lhe a filha não leva, e não lho diz agora porque está quase a rebentar.