sábado, maio 4

Os perigos da ficção


Trabalho delicado este de escrever ficção, com sobra de perigos inesperados e reservando surpresas que bem se dispensavam, pois aquele que inventa histórias regra geral é um solitário com um visão muito particular do mundo e do semelhante, raro vê maldade nas suas invenções ou naquilo que observa, mas esquecido de que hoje, com todas estas modernidades e facilidades de comunicação, mais do que nunca é válida a certeza do antigo provérbio que diz que as palavras voam, mas a escrita fica, e é nesse ficar que a porca de quando em quando torce o rabo.
No que me respeita, confesso que por preguiça umas vezes, noutras por desleixo, mas também com a tola certeza de que se disfarçar o preciso  ninguém se irá reconhecer, acontece-me deitar mão do aspecto físico dum conhecido, da bazófia doutro, dos tiques duma vizinha, do andar cambado de um tio, e assim por diante.
Tempos atrás, julgando que o encontro tinha sido fortuito e a nossa amizade a razão para irmos beber um fino, vi-me diante do Vasconcelos, que depois dos salamaleques do “Tudo bem lá em casa?” mudou de expressão e, com uma ponta de azedume, queria saber se era verdade o que lhe tinha chegado aos ouvidos: numa crónica teria eu retratado alguém com o tique de que quando caminhava, depois de uns tantos passos raspar o chão com o pé esquerdo. Ora como os seus amigos sabiam e alguns mais chegados até zombavam daquilo, houve um tempo em que cada vez que ficava nervoso cedia ao impulso de na rua de repente parar, para ver se as solas dos sapatos estavam limpas, não fosse por descuido ter pisado alguma porcaria.
Concordava, não era o mesmo tique, havia diferença, mas para ficar descansado queria ouvir da minha boca se sim ou não tinha pensado nele ao escrever aquilo, ou se fora apenas coincidência.
Qualquer outro desconfiaria do exagero com que neguei má intenção e fingi de ofendido, repetindo que nunca faria semelhante coisa, menos ainda a ele, amigo de sempre, mas o Vasconcelos é daquelas almas que por natureza ou medo têm precisão de segurança, acreditam na bondade, em tudo descobrem um lado positivo. E assim, apertando-me calorosamente a mão, a agradecer o tê-lo sossegado, bebeu um gole, pigarreou, confessando que já agora gostaria de saber se quem escreve tira tudo da cabeça, ou se ao reparar numa bizarria de alguém logo a usa num conto ou num romance.
Solene, como se depusesse no tribunal, jurei-lhe que é esse o drama do escritor: tirar tudo da cabeça, ganhar o pão com mentiras e invenções.