sábado, maio 11

O destino do Alcides


A memória tem isso: inesperadamente, sem pedir licença, vem-nos afligir com a recordação dum ou doutro daqueles momentos que preferimos manter na cave do esquecimento, ou pelo menos longe bastante para que raro nos apoquente.
Também há ocasiões em que desenterramos pecados antigos, às vezes como penitência, ou para que a coragem de recordá-los seja uma forma de  absolvição e nos dê alguma paz de espírito. Noutras é a lembrança de alguém que cruzou a nossa vida, por quem tivemos amizade, mas compreendemos mal o seu trágico fim.
Julgado pelos padrões de, digamos, os anos oitenta do século passado, o Alcides passaria por ser um belo rapaz. No físico, mas também na atitude, no cuidado da sua apresentação, um janota dos pés à cabeça. Eram pequenos detalhes, mas a maneira como deitava o casaco pelos ombros, as camisas de Sacoor Brothers, gravatas de Stefano Ricci, sapatos de Ferragamo, a barba sempre bem aparada, o jeito de pegar no cigarro, tudo isso o distinguia dos que eram da mesma geração. Alguns riam daquela vaidade, outros achavam-no parvo, num ponto estavam todos de acordo: o casamento com a Aninhas, filha única e menina dos olhos de uma madrinha rica tinha sido a sua sorte grande.
Despachada, prestável, sempre bem disposta, Aninhas parecia ter vindo ao mundo com um único propósito: o de fazer com que o Alcides levasse o que se chama uma vida regalada, mimando-o como teria feito ao filho que, nascida estéril, a Natureza lhe negara.
Essa vida de regalo era a dele desde nascença, pois já a mãe viúva o apaparicara, achando bem que depois do liceu não tivesse feito mais do que hesitar sobre o curso adequado ao seu temperamento. Mas dos poucos que experimentara nenhum servia, e como não tinha ambição nem necessidade de  de assegurar o futuro, bastavam-lhe o Mercedes, os amigos, e a fanfarronice do “projecto” a que se referia em meias palavras, dando a entender que não ia demorar a que um dia o vissem na televisão e nas primeiras páginas dos jornais.
Alimentava o mistério com viagens para destinos que a própria Aninhas desconhecia e donde regressava entusiasta, garantindo que estava por pouco, seria uma bomba. De facto não demorou, mas de espectacular nada teve, foi antes exemplo da banalidade de tantas tragédias. Começou pela notícia de que tinha desaparecido, depois o tempo passou, nunca lhe descobriram o rasto nem o cadáver.
Em certas horas recordo o Alcides e pergunto-me se a vida é um acaso ou haverá um poder a mandar no destino de cada um.