A memória tem
isso: inesperadamente, sem pedir licença, vem-nos afligir com a recordação dum
ou doutro daqueles momentos que preferimos manter na cave do esquecimento, ou
pelo menos longe bastante para que raro nos apoquente.
Também há ocasiões
em que desenterramos pecados antigos, às vezes como penitência, ou para que a
coragem de recordá-los seja uma forma de
absolvição e nos dê alguma paz de espírito. Noutras é a lembrança de
alguém que cruzou a nossa vida, por quem tivemos amizade, mas compreendemos mal
o seu trágico fim.
Julgado pelos
padrões de, digamos, os anos oitenta do século passado, o Alcides passaria por
ser um belo rapaz. No físico, mas também na atitude, no cuidado da sua apresentação,
um janota dos pés à cabeça. Eram pequenos detalhes, mas a maneira como deitava
o casaco pelos ombros, as camisas de Sacoor Brothers, gravatas de Stefano
Ricci, sapatos de Ferragamo, a barba sempre bem aparada, o jeito de pegar no
cigarro, tudo isso o distinguia dos que eram da mesma geração. Alguns riam daquela
vaidade, outros achavam-no parvo, num ponto estavam todos de acordo: o
casamento com a Aninhas, filha única e menina dos olhos de uma madrinha rica tinha
sido a sua sorte grande.
Despachada, prestável,
sempre bem disposta, Aninhas parecia ter vindo ao mundo com um único propósito:
o de fazer com que o Alcides levasse o que se chama uma vida regalada,
mimando-o como teria feito ao filho que, nascida estéril, a Natureza lhe
negara.
Essa vida de
regalo era a dele desde nascença, pois já a mãe viúva o apaparicara, achando
bem que depois do liceu não tivesse feito mais do que hesitar sobre o curso
adequado ao seu temperamento. Mas dos poucos que experimentara nenhum servia, e
como não tinha ambição nem necessidade de de assegurar o futuro, bastavam-lhe o Mercedes,
os amigos, e a fanfarronice do “projecto” a que se referia em meias palavras,
dando a entender que não ia demorar a que um dia o vissem na televisão e nas
primeiras páginas dos jornais.
Alimentava o
mistério com viagens para destinos que a própria Aninhas desconhecia e donde regressava
entusiasta, garantindo que estava por pouco, seria uma bomba. De facto não demorou, mas de espectacular
nada teve, foi antes exemplo da banalidade de tantas tragédias. Começou pela
notícia de que tinha desaparecido, depois o tempo passou, nunca lhe descobriram
o rasto nem o cadáver.
Em certas horas recordo
o Alcides e pergunto-me se a vida é um acaso ou haverá um poder a mandar no
destino de cada um.