À medida que os anos correm
vamo-nos desenganando, aprendemos que há verdade no provérbio e de facto nem
tudo o que parece é, mas só os mais sábios ou melhor preparados para a vida sabem
como se cria calo na alma, aceitam as decepções com um encolher de ombros e
passam adiante.
São esses que deviam servir de
exemplo, mas uma coisa é a sabedoria popular, outra e bem diferente a frieza
com que uma vez o semelhante, noutras vezes o Destino, nos atiram pontapés tão
certeiros que ficamos de rastos e a duvidar se voltaremos a ser quem éramos.
O Miguel Brunhoso é dos que ganhou
calo. Da infância até agora, ainda longe da velhice, a sua vida é uma
estonteante sucessão de altos e baixos, quedas e ressurreições, algumas tão
extraordinárias que mesmo num romance de cordel pareceriam inverosímeis. Essas
são as de que nós, seus amigos, estamos ao corrente, e lhe valeram a alcunha de
‘Sempre-em-pé’. Das outras fala por alto, como se receasse que entrando em
detalhes diminuísse o brilho das suas vitórias.
Nem todos gostamos do Miguel, mas apreciamos-lhe
a fibra, temos respeito pelo modo como enfrenta cada novo contratempo com
redobrada coragem. Todavia, há um ponto em que alguns de nós temos dificuldade
em acompanhar o seu raciocínio de que neste tempo de confusão em que o que era
mau agora é bom, o feio se tornou lindo, o pecado é virtude, e já não se sabe
com segurança quem é homem ou quem é mulher, fantasia ele a urgência de uma
nova ordem que – palavras suas – restaure os valores tradicionais e reponha a
sociedade nos carris sobre os quais, durante séculos, harmoniosamente rolou.
Não adianta contradizê-lo, menos
ainda apontar-lhe que o tempo dos ditadores passou, o poder é hoje mais secreto
e subterrâneo do que nunca, os que figuram de presidente nem sequer se
esforçam a disfarçar que são pau-mandado. O Miguel, porém, recusa ouvir, quanto a ele a coisa está por pouco, a raiva
é muita e não faltam armas, nada adianta andarem os políticos a prometer
melhorias e amanhãs que cantam, ou a assustar-nos com as tretas do clima, da
poluição, dos oceanos de plástico, porque basta uma faúlha e vai tudo pelos
ares.
Diz ele aquilo, mas é pose, sabe
tão bem como nós que aqui e ali poderá arder uma central nuclear, um vulcão no
oceano causar um tsunami, um terramoto matar centenas, mas entretidas como andam
nenhuma sociedade quer abalos, mudanças ou revoluções, agora tudo se faz a
sorrir e a gritar slogans, a agitar cartazes, ao ritmo de pandeiretas e tirando
selfies.