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Façam-lhe o enterro, respeitem-lhe a memória, dêem os pêsames
à família, mas deixem-se de tretas e de apregoar que ele nos trouxe a liberdade
e a democracia. Não trouxe. Essa devemo-la à Alemanha de Willy Brandt, à Holanda de Joop
den Uijl, a Henry Kissinger e ainda, entre mais uns quantos, aos banqueiros e empresários que sabiam
que com o regime de Marcello Caetano nunca Portugal poderia entrar no Mercado
Comum.
O texto que segue publiquei-o anos atrás, é a voz do povo a
fazer contrapeso à lamechice das elites
Seria longo detalhar as razões da minha antipatia por Mário Soares como
figura política. Datam de Paris, no começo dos anos 60, e permanecem. Tenho
também pouco apreço pelos que, ingénuos ou ignorantes da História, e dizendo-se
eternamente gratos, se lhe referem como "o homem que nos trouxe a
Democracia." Não trouxe. As peripécias são outras e menos simples.
Mário Soares desagrada-me ainda como pessoa, pois simboliza aquilo que
detesto e de que desdenho na burguesia portuguesa: a falsa pachorra, a
jovialidade de pechisbeque, o modo paternal, o sorriso pronto, a mãozada, os
Ora viva!, a festinha aos humildes; por detrás de tudo isso a ganância, o
cálculo frio, o desprezo do semelhante, a presunção, o sentimento bacoco de
casta, os rapapés, a mediocridade.
O senhor Mário Soares sabe o que dele penso. Isso, contudo, parece não
obstar, pois tenho recebido os seus livros, autografados, e surpreendeu-me um
Natal, enviando um retrato seu, dedicado "Ao meu caro amigo J. Rentes de
Carvalho".
Surpresa tive-a também um dia em 1998, quando o competente e muito amável
João Rosa Lã, então nosso embaixador em Haia, me telefonou anunciando:
- O Mário Soares vem cá almoçar e pediu que o convidasse, pois quer muito
falar consigo.
Lá fui. Seríamos cinco ou seis, mas o cordial ex-presidente como que se
apoderou de mim e, esquecendo os outros, esmiuçou longamente, miudamente, a sua
visão da política portuguesa.
Fui ouvindo, e em determinado momento, para rebater o que ele afirmava
disse-lhe:
- Mas isso, senhor presidente…
- Já não sou presidente! Chame-me Mário.
Agradeci, recusei, disse-lhe que da minha parte acharia indecorosa a
familiaridade, se bem que...
- Se bem que?
- Dá-se o caso que o senhor presidente e eu já dormimos na mesma cama.
Contei-lhe depois a história, resumindo os detalhes e escondendo o remate.
Deve ter sido em Setembro de 1948, os dezoito anos feitos, que o Dr.
Armando Pimentel, amigo e mentor, me convidou para um jantar em Macedo de
Cavaleiros, onde padres ricos e proprietários abastados iam festejar a
excepcional colheita de trigo e centeio desse Verão.
De Estevais a Macedo leva-se menos de uma hora, naquele tempo dava a ideia
de se ter feito grande viagem. Amesendámos na então já nomeada Estalagem do
Caçador. Éramos muitos, eu o único jovem, sei que se começou com alheiras e
chouriças, a seguir perdiz, borrego, leitão. O resto sumiu-se da memória.
Uns trinta anos depois aconteceu-me passar por Macedo com a minha mulher,
almoçámos na Estalagem, iniciando uma espécie de ritual, e desde então
vezes sem conta lá comemos e pernoitámos, criando boa amizade com a D. Maria
Manuela, que com simpatia e perícia dirigia o estabelecimento.
É ela que nos acolhe uma tarde de muito calor, manda preparar refrescos e,
enquanto beberricamos e coscuvilhamos, diz que nos reservou um quarto especial.
Sobe connosco, abre a porta, e anuncia com maliciosa solenidade:
- O Mário Soares dormiu aqui ontem!
No fundo achamos desagradável a nova, é como se as exalações do corpo e da
personalidade do homem ainda flutuem no aposento, mas sorrimos, dizemos umas
palavras de circunstância, a D. Maria Manuela despede-se.
A empregada, transmontana, retornada de Angola, espera que a patroa desça,
encosta a porta, e rosna, truculenta, ao mesmo tempo que nos agarra pelos braços:
- É verdade! O filho da puta dormiu aqui! Mas estejam descansados, que já
desinfectei!