terça-feira, agosto 31

Entrudo



Dez e dez da manhã, quarta-feira, mais de uma hora de atraso, corria pela avenida, sem fôlego, aterrorizado com a cara que o chefe ia fazer quando o visse entrar, desculpa não tinha, uma inter­minável série de atrasos nos oito meses de emprego.
Mesmo a correr não chegava lá antes das dez e meia. De cabeça baixa, uma proa, furava a multidão que enchia os passeios, surdo aos insultos e às pragas. Tinha pensado em tomar um táxi, ergueu mesmo o braço. Mas com que dinheiro? Os pulmões aguentavam mal a corrida, ao respirar saía-lhe do peito um som rouco e descompassado, o corpo encharcado de suor. Mais uma rua, os quatro andares, bom-dia senhor Pereira. Eu sei! Desculpe! Queira desculpar? Peço desculpa, senhor Pereira!
Ansioso por chegar e temendo a cara, os gritos. Certamente que desta vez o despediam. Rua! Desande! Como havia de explicar? Mentir? "Matar" outra vez a tia? Tenha paciência, senhor Pereira, tive de ir ao funeral. De gravata azul às pintinhas brancas? Fora! Já lhe disse! Fora! E nunca mais ponha cá os pés! Está a ouvir, sua besta? Nunca mais!
 
Parou um instante a ganhar forças. Quatro andares, oito patamares, cento e doze degraus, PIMENTA & PIMENTA S.A.R.L. A vista das letras douradas e pomposas, destacando-se no fundo preto da tabuleta, tirou-lhe o resto da coragem. Não foi capaz de entrar.
Estranho, aquele silêncio das máquinas, um ciciar de gente, tão ténue que nem mesmo com a porta entreaberta se podia distinguir o que diziam. Entro? A mão tremia-lhe na maçaneta. Hesitava em dar os três passos que o separavam do balcão da secretaria. Ouviu o chefe espirrar lá dentro, com aquele modo de dizer "Ai! Ai!..." como se lhe fizessem cócegas.

Deu à porta um empurrão desnecessário e encarou os colegas, o chefe que ainda segurava o lenço contra a boca. Às vezes, nos filmes, os heróis avançam assim, de peito feito contra as balas. A saliva tornou-se-lhe pó amargo, a garganta entupiu, mas antes de ter tempo de começar a falar o Pereira pôs um dedo nos lábios, a intimar silêncio, e fazendo um gesto mandou-o sentar.
Foi pé ante pé, obediente. O rumorejar vinha da sala da direcção. O chefe olhou-o e apontou o relógio, acusador, acenando que não queria resposta nem desculpas. O Fernandes, guarda-livros com trinta anos de casa, aguçava um lápis à janela, e as dactilógraf­as, silenciosas, concentradas, esforçavam-se por compreender o cochicho dos patrões.
Começou a arrumar papéis, para se ocupar. Reconfortado com aquele acaso que o dispensava de inventar desculpas. Acendeu um cigarro. Deu uma ajeitadela à gravata, arranjou a camisa que com a correria se lhe escapara das calças.
Um quarto de hora, meia hora. A conversa dos patrões era cortada por longos momentos de silêncio, as suas sombras desenhavam-se às vezes na parede de vidro fosco que separava as salas. As passadas de ambos faziam tremer o soalho, lembrando os cento e vinte quilos de que cada um deles se orgulhava e lhes tinham valido entre colegas a alcunha "Os Pés de Chumbo".
Sobressaltaram-se quando a cabeça de Manuel Pimenta, o mais velho, apareceu numa frincha da porta, gritando ao chefe da secretaria:
- Ó Pereira, trouxeram os bigodes?
- Esta caixa?
- Dê cá depressa.
Os olhos de todos seguiram a caixa, o Pereira desapareceu lá dentro, ouviram-no depois rir e dizer "Fica-lhe muito bem, mesmo muito bem."
Cauteloso, empurrou a cadeira sem barulho, acercou-se da janela onde o guarda-livros continuava a afiar o lápis:
- O que é que há?
- Então você não sabe? O patrão vai de urso.
- Hein?
- No cortejo. Vão ambos.
- Não sabia.
- É por isso.
Manuel Pimenta apareceu de repente, vestido de peles brancas, a bambolear-se, a agitar a cauda, segurando debaixo do braço uma enorme cabeça de urso com dentes arreganhados que mordiam um peixe. O irmão, atrás dele, vinha de pirata.
- O que é que vocês acham?
Acharam que estava bem. Estavam ambos bem. Disfarçados assim ninguém os ia reconhecer.
- Vocês acham que não?
Acharam em coro que não e Manuel Pimenta encaminhou-se para o espelho, para enfiar a cabeça, mas deteve-se como se lhe ocorresse uma urgência, veio agarrá-lo pela lapela do casaco, numa raiva súbita:
- Outra vez atrasado, seu filho dum caneco! Julga que aqui não se trabalha? Que cada um chega à hora que quer? Rua! Rua!
Quis desculpar-se, explicar, pedir. Segurou-o pela pata dianteira e ficou-lhe uma mão-cheia de pêlos brancos. Quis pará-lo, mas recebeu um safanão. Os outros, silenciosos e imóveis, olhavam no vazio, longe dali. Ninguém que o ajudasse.
- Eu prometo, senhor Pimenta. Prometo...
- Pois prometes! Eu também te prometo que ordenado não tornas a ver! - e depois de pôr a cabeça de urso acenou ao irmão, a quem o revólver incomodava ao andar:
 - Vamos embora, Joaquim.

Era inútil falar-lhes, pedir mais. Iam escadas abaixo, às gargalhadas. Os colegas e o chefe, desinteressados dele, debruçaram-se nas janelas, queriam ver o cortejo, já se ouvia a música.
Ficou um momento paralisado, depois remexeu nas gavetas, mas não tinha lá nada, ou quase: uma caixa de fósforos, o emblema do Benfica, uma esferográfica.
Saiu, cuidadoso em não bater com a porta, para não incomodar e para que não julgassem que chamava a atenção, estonteado de que aquilo finalmente acontecesse. Com certeza não voltava a arranjar trabalho. As coisas estavam ruins, mesmo para quem tinha estudos ou padrinhos.
O Pereira, aos berros, alcançou-o no patamar:
 - Onde é que você vai, seu palerma! Não sabe que o patrão é assim? Que gosta de meter medo?
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In O Joalheiro, 1987