Filho de gente humilde, António Rodrigues Alves Faria nasceu ali perto, em Matinho de Forjões, cerca de 1860.
Aos catorze anos foi de marçano no Porto e quase logo em seguida, sem papéis nem dinheiro, abalou para o Brasil escondido num navio de carga.
Lá trabalhou, sofreu, poupou, comerciou. No começo do século XX, com o título de visconde e riqueza de milionário, tornou ao lugarejo donde tinha saído de pé descalço.
Comprou terras sem conta. Construiu uma escola. Comprou a Quinta de Curvos que estava ao abandono e levantou-lhe os muros arruinados, substituiu os velhos portões de madeira por outros de ferro, encimou-os quase todos, como ainda se pode ver, com as suas iniciais e a data: ARAF-1910.
Mandou fazer também uma luxuosa mansão e cercou-a de jardins, de pomares, de lagos grandes, lagos pequenos, mirantes, grutas artificiais de cimento armado a imitar cortiça, como era moda nesse tempo.
Foi infeliz nos amores. Faleceu sem completar os sessenta e uns primos afastados, seus únicos herdeiros, gente boçal, indiferente, esbanjaram a herança, venderam a quinta a um homem de Lisboa, que a revenderia a outro.
Depois, de mão em mão, de desleixo em descuido, a cerca foi derruindo, as silvas foram avançando, a madeira da casa apodreceu, as traves cederam, caiu parte do telhado, caíram as chaminés.
No começo dos anos sessenta, ansioso por se ver livre dum trambolho que não dava lucro que chegasse para pagar as contribuições, o proprietário pô-la à venda por uma migalha.
Um inglês pagou essa migalha e, tal como o brasileiro tinha feito antes dele, deu à quinta o esplendor antigo. Restaurou-se a casa, limparam-se os campos. Alargaram-se grandemente os jardins porque mister Regal, homem solitário, da infinidade de paixões humanas apenas tinha uma: a cultura das camélias. E de todas as recompensas do mundo apenas almejava uma que lhe coube muitas vezes: ganhar nos concursos o primeiro prémio, a Camélia de Ouro.
Na Primavera de 74, desafeito a rumores depois de tantos anos de paz, Leslie Regal assustou-se com a Revolução dos Cravos e as ameaças que a plebe vinha gritar aos portões. O seu único desejo era fugir. Se o vizinho pagasse seis mil contos - bem menos que o valor dos muros - ele entregava-lhe a propriedade logo ali.
O vizinho achou caro. Também achou complicado que o bife quisesse o pagamento em libras ou dólares. Então não era o escudo uma moeda forte? E farejando a oportunidade disse que lhe parecia caro. Oferecia a metade.
O inglês teve uma reacção inesperada. Queixando-se de que se sentia cada vez mais só, cada vez mais mais cansado, se o vizinho aceitasse trocar a filhinha de quatro anos pela propriedade...
Ao contar-me essa parte da estória a rapariga tinha sorrido com o embaraço de quem quase estivera para ser moeda de troca. Felizmente que o pai recusara a transacção e o inglês acabara por encontrar um industrial de Braga que, sabendo o que são pechinchas, lhe pagou o pedido a contado e em libras.
- E depois?
Um grupo de curiosos tinha-se juntado à nossa volta e, antes que a rapariga pudesse responder, um homem de idade travou-me o braço:
- Eu trabalhei lá. Eu é que sei.
O novo proprietário acabara com as camélias, tinha mandado fazer muito plantio de vinha e de pomar, pocilgas enormes, aumentos nas adegas, uma coelheira onde havia três mil coelhos.
- Três mil?
- Ou mais! Tendo comida à farta os coelhos não se cansam de fazer a coisa.
Houve risos brejeiros, mas o homem continuou sem se descompor. A paga era razoável e tudo tinha corrido bem até fins de 81, começos de 82.
De repente, assim sem mais nem menos, despediram o pessoal antigo, contrataram outra gente, e só quando se começou a ver a pretalhada a andar para lá e para cá em grandes Mercedes, é que se soube que o novo dono era o Mobutu. Desde então andava tudo secreto, tudo muito escondido, os que lá trabalhavam eram de longe e tinham ordens para não falar a ninguém.
Com um gesto dei a entender que compreendia o seu azedume, e o ancião agarrou-me de novo pelo braço, baixando a voz em confidência:
- Ainda outra coisa. O homem de Braga pagou seis mil contos ao inglês para lhe apanhar a quinta, não foi? Mas por quanto a vendeu ele ao Mobutu? Diga lá.
- Não faço ideia. Doze mil? Quinze mil?
- Duzentos e cinquenta mil, meu senhor! Du-zen-tos-e-cin-quen-ta-mil! E o filho da puta do preto dizem que passou logo o cheque, nem sequer regateou!