segunda-feira, janeiro 28

O Rei-da-Terra

Hospedei-me por uma noite num hotel da praça da Batalha, contente de ver em redor quase todos os cinemas e cafés dout­rora, a sua presença a confirmar que nem tudo se estiola, que nem tudo morre.
Desço para o rio, atravesso a ponte, refaço o que foi o caminho para casa. Centenas ou milhares de vezes palmilhado, pouco importa a conta.
Por um instante, com sede, quase me deixo tentar pelos pára-sóis coloridos das esplana­das, mas continuo em frente, como se fosse inconveniência ou traição ir-me sentar entre estranhos no mesmo lugar onde antes brinque­i, onde sonhei. Onde meu pai ia e voltava na sua ronda, vigian­do o rio, assestando o binóculo nos vapores quando um movimento lhe parecia suspeito, ou quando os tripulantes desciam pelo portaló.
Frustrado por ter de apreender o pequeno contrabando da meia dúzia de maços de cigarros presos dentro das calças, ou da garrafa de uísque apertada no sovaco, e ao mesmo tempo assistir impotente ao tráfico do vinho, do volfrâ­mio, das mercadorias, que os seus chefes e alguns colegas acobertavam.
Vira-os ganhar fortunas com o contrabando no começo da guerra, construir casas apalaça­das, subir de posto, receber medalhas por bons serviços, enquanto ele - que por natureza e educação tinha a lei por dogma - se gastava a pedir inquéritos urgentes, a apresentar queixas, a fazer listas, a escrever relatórios.
Papelada que desaparecia sem efeito nos recônditos da Alfânde­ga, o sombrio e imenso edifício de grani­to que eu espiava interessado das nossas janelas, desde que ouvira dizer que, nos seus armazéns, se guarda­vam ainda tesouros do tempo em que os galeões vinham da Índia e do Brasil.
Meu pai, que até então tinha bebido moderadamente, co­meçou a intoxicar-se. Dizer que se embebedava não seria a expressão justa, porque nunca ninguém o viu bêbedo, mas logo de manhã bebia como possesso, num estado segundo, apressado em atingir aquele momento em que, embotada a sensibilidade, podia consi­derar tudo com absoluta indife­rença.
Se por qualquer razão se mantinha sóbrio tornava-se irascível. Um dia, por uma bagate­la, maltratou de tal jeito um colega a soco e pon­tapé que foi condena­do a ficar detido no quartel o tempo que o outro passas­se no hospital. Três semanas.
Nas horas de visita eu levava-lhe jornais, perguntava-lhe se estava bem, e mais não tinha para dizer, perturbado como me sentia pelas desencontradas emoções da adolescência.
Doía-me o vê-lo sombrio, agastado, a caminhar absorto em volta do quarto, esquecido da minha presença. Mas é verdade que entre nós nunca tinha havido, nem nunca haveria, intimidade.
Não recordo que jamais tenhamos trocado uma palavra de encoraja­mento ou con­forto, e mesmo depois dos anos terem embotado algumas arestas dos nossos caracteres, permanecemos dois pólos, tão intensa­mente opostos que nem sequer a paixão comum dos livros e do cinema conseguíamos partilhar.
Em Junho ou Julho de 45, uma noite, ao fim da ceia - vejo-o de olhos baixos a cortar a casca de uma laranja em gomos regulares,vagarosamente, como era seu hábito, - anunciou que tinha pedido que o transferissem para a fronteira do Minho.
- É melhor ir-me embora daqui, antes que um dia perca a cabeça e mate alguém. É melhor ir-me embora - repetira ele depois de uma pausa, a sublinhar a sua decisão.
Minha mãe e eu ainda nos olhámos, surpreendidos, mas o Rei-da-Terra decidira, era caso acabado. Ele timoneava o Destino e nós, seus meros apêndices, sem opinião própria nem voto na matéria, tínhamos de nos resignar e acompanhá-lo.