domingo, dezembro 19

O pesadelo do comboio

 

É um pesadelo que há cerca de meio ano o “persegue”, no sentido de que de longe a longe se repete, e embora de vez em quando variem nele os detalhes ou a situação, o sentimento final que em sobressalto o faz acordar é sempre o de um perigo iminente. Não a ameaça de alguém ou um desastre, mas a certeza de que quando o comboio parar na estação – sempre uma de fim de linha – o inevitável acontecerá.

Sente-se então a contar os minutos que ainda faltam, treme ao ouvir os altifalantes anunciar a proximidade da chegada. É esse o momento em que, embora dê conta que o comboio está quase a parar, não consegue suprimir um grito de terror, porque de súbito, como se se tivessem desfeito no ar, os outros passageiros desapareceram e tudo se transforma. Faz-se um silêncio irreal, o que era a carruagem como que se vai desfazendo, está sem vidraças, sem portas, encolhe lentamente, quando o movimento pára fica transformada num compartimento menor do que uma cela, tornou-se um cubículo de metal em que, embora com dificuldade, consegue respirar, mas ignora por quanto tempo ainda.

Não grita, tem consciência de que a hora da sua morte ainda não chegou, mas é algo inconcebível, de tal maneira temeroso que desafia a imaginação, ultrapassa o que possa fantasiar sobre os martírios do Inferno.

Então, como o afogado que lentamene consegue vir à tona da água, respira fundo, acorda tresmalhado e senta-se, surpreendido de que o candeeiro na mesinha de cabeceira esteja aceso, a Judite a sorrir e a  encará-lo com uma expressão que desde há uns meses nota, mas não consegue deslindar o que significa.

Nos últimos tempos qualquer coisa mudou nos dezoito anos de casamento, embora nenhum deles seja capaz, queira, ou se arrisque a pôr o dedo na ferida. Se ferida se pode chamar à sucessão de pequenas diferenças, pequenos desentimentos, quesílias, queixas, aborrecimentos, distrações, enganos, a súbita urgência que ambos sentem em discordar, esquecer uma promessa, ou não perder a oportunidade de passar uma rasteira, mesmo pequena.

Têm a certeza que na sua relação, aliás nunca sem percalços, qualquer coisa lentamente vai mudando, mas é assunto a que nem com rodeios aludem, combates virtuais em guerra não declarada.

Dias atrás, no fim do jantar, como se por acaso aquilo lhe ocorresse, perguntou-lhe se também às vezes sofria de pesadelos. A reacção da Judite foi estranha, desatinada, a do malfeitor apanhado em flagrante.

Não tem provas, só a forte suspeita de que ela o quer envenenar.