sábado, dezembro 11

Fodilhões

 

Desenterrámo-lo ontem ao almoço, já na sobremesa, um disse que a casa estava a precisar de telhado mas ninguém sabia do paradeiro da filha, que tinha vivido em Coimbra e anos depois desaparecera em Lisboa.

- Devia ter quê? Oitenta?

- Por aí.

Foi então que se recordou o senhor Valentim, o pai, um reformado azedo, com terras de seu, o jornal sempre debaixo do braço, em casa ou na rua o chapéu enterrado na cabeça.

- Tinha sido da Guarda.

- Usava uns óculos redondos, pequeninos, com aros de aço.

- Como os Beatles.

- Nesse tempo não havia Beatles.

- E bigode à maneira do Himmler.

- Quem era o Himmler?

- Deixa lá.

Continuámos a lembrança do sargento, que na meninice nos assustava com a tesura do modo, o olhar inquisitivo e a ameaça da bengala ao passarmos perto.

- A mulher também era fraco traste. Tratava a Adozinda como se fosse escrava ou preta da África.

- Pior.

- O Valentim emprenhou-a.

Como  os clichés se gastam não vou dizer que a revelação caiu como uma bomba, mas a surpresa foi grande, o silêncio demorado.

- Então a...?

- É filha, pois claro.

- Quem haveria de adivinhar que o gajo era fodilhão!

De nome em nome descobriram-se ali mais uns quantos insuspeitos bastardos do sargento, reviu-se a história das famílias, nossas e alheias, passou-se a esponja sobre os pecados dos falecidos. Mas qualquer coisa ficou, um incómodo, quando nos despedimos ninguém quis marcar data para o próximo almoço.