quinta-feira, dezembro 9

A longa espera

Excerpto do prefácio que em 1992 escrevi para o livro de um amigo:

Espera-se a vitória do clube. Espera-se o destino cantando o fado. Perfilam-se os forcados à espera de vencer o touro. Arrastam-se os crentes pelo chão de Fátima à espera do milagre.

As circunstâncias do afastamento podem diferir, e o estado de espírito do emigrante que voluntariamente deixa o seu país em busca de vida melhor, ou o do expatriado que corre à aventura, não é por certo idêntico ao do exilado político. Mas ao redor dos vinte anos são poucas para o aventureiro, o emigrante ou o exilado, as oportunidades de sofrer com o afastamento. No estádio inicial da expatriação há em cada novidade mais caos do que harmonia.

A paisagem é e ficará estranha. Mesmo com o tempo só em parte a chegaremos a absorver, só em parte se tornará nossa, pouco importando que ultrapasse em beleza ou majestade a que deixámos.
Esse sentimento desnorteante de apenas conseguir absorver em parte, apreciar em segmentos, compreender em retalhos, conhecer à superfície, vem logo de princípio e fica para sempre a marcar as relações do estrangeiro com a sociedade que o rodeia, as pessoas, as coisas, os hábitos e os modos.
A experiência evidentemente contribui para limar as asperezas. Além disso, a passagem dos anos permite desenvolver de tal modo o instinto camaleónico, que o estrangeiro chega por vezes a conseguir funcionar como nativo. Mas de facto só na aparência, só até certo ponto, pois à medida que se desenvolve nele o sentido e a necessidade do disfarce, mais grossas se tornam as raízes que o prendem à origem.

O sentimento de, pela primeira vez, me achar de verdade desenraizado e estrangeiro, só o tive ao chegar à Holanda em Março de 1956. Ao contrário da minha experiência fui encontrar aí uma sociedade muito diferente das que tinha conhecido, inesperadamente conservadora, provinciana, dócil na sua obediência às autoridades e às regras. Uma Holanda onde mesmo Amsterdam era bucólica.
Tendo decidido ficar, e numa idade, os vinte e seis anos, na qual, além de se ser ainda muito sensível ao ambiente, tanto a personalidade como o carácter estão longe de alcançar a maturidade, eu creio que, umas vezes por oposição, outras vezes por simbiose e simpatia, foi na Holanda e entre os holandeses que se desenrolou uma fase decisiva da minha formação.
A Portugal voltei pela primeira vez em 1964, depois de uma ausência de quase catorze anos, intimando-me, pelo caminho, a não fazer comparações materiais, morais, sociais, menos ainda políticas.
Atravessei a Espanha em ânsias, passei a fronteira a tremer, mas tanto as impressões dos primeiros momentos, como as dos dias seguintes, confirmariam o mal fundado dos meus temores.

As transformações eram poucas, menos dramáticas e menos visíveis do que eu esperara: a idade tinha envelhecido os rostos que eram jovens quando eu partira; devido ao dinheiro remetido pelos emigrantes notava-se um modesto bem-estar; a guerra nas colónias era um acontecimento de que se falava com o desprendimento das catástrofes que acontecem longe. Em Lisboa materializava-se, finalmente, o sonho secular de unir com uma ponte as margens do Tejo.

Os laços familiares e sociais, emperrados pela longa ausência física, pela artificialidade das cartas obrigatoriamente bem humoradas, dos telefonemas obrigatoriamente optimistas, retomaram a normalidade. E assim regressei à Holanda, num estado de espírito mais calmo do que aquele em que partira, justificando-o com o género de certezas que não resistiriam à análise, mas tinham as vantagens do sedativo: o ditador não seria eterno, o país era pobre demais para se pagar o custo de uma guerra, a desigualdade social fatalmente acabaria por ser menos gritante.
Desse modo, além das que já antes possuía, a partir desse ano Portugal ganhou aos meus olhos as característica de um parente idoso e adoentado, que eu visitava com frequência, desejando sinceramente que não tardasse a melhorar.
Quando o sedativo deixou de surtir efeito, e me dei conta de que as melhoras desejadas não passavam de ilusão, comecei a sofrer de um sentimento de culpa. Pessoalmente vivia com conforto, tinha liberdade, conhecia mais dias de alegria que de sombra, encarava o futuro com esperança. Mas todo esse meu luxo se tornava em fardo ao lembrar a miséria, as circunstâncias primitivas, as indignidades e injustiças da repressão, as humilhações a que tinham de se sujeitar os sem dinheiro nem padrinhos.
Foi essa a época dos presentes excessivos, dos grandes remorsos, do desespero de me sentir jovem, livre, forte, mas acorrentado a uma pátria atrasada e exausta pela sua longa espera.

A mudança veio com a Revolução de Abril, mas diferente e menos brusca do que seria de esperar.
O que primeiro me surpreendeu durante as visitas que então fiz a Portugal, foi a politização de tudo e o curioso uso do voto, empregado antes como instrumento de discórdia e vingança, do que como expressão dum ideal político.
Para mim continua a ser uma experiência desconcertante ouvir alguém, normalmente sensato, afirmar a sério que nas próximas eleições votará comunista, só porque o padre este ano preparou mal a procissão.

Outras surpresas no período seguinte à revolução: a mudança profunda das relações sociais, o surgimento de uma agressividade que eu - e a minha opinião não é única - julgava não se coadunar com a branda maneira portuguesa de ser; o aumento da indiferença entre as pessoas; a visível desagregação da família.

Em cerca de década e meia Portugal “renovou-se”, eu “amadurei”. São poucos os pontos de contacto que tenho com as gerações novas, desinteressadas como se mostram do passado – para elas 1974 já é a antiguidade. Desesperantes são também as minhas relações com a “velha guarda”, a qual, tendo no seu tempo desistido de agir e de “viver”, sofre agora acessos patéticos de modernismo.
A fortuna dos já ricos continua a aumentar, surgem novas castas de abastados, e a linha que separa os que possuem, dos deserdados, vai-se tornando cada dia mais nítida e inibitória como uma fronteira ou uma cerca.

Não é possível, contudo, desprender-se a gente daquilo que nos é mais querido. Nem eu o desejaria. Além disso, quanto maior é no tempo e na vivência, a distância que nos separa da pátria, com mais tenacidade nos agarramos a tudo o que ela para nós foi e é, mais intenso se torna o medo de perder e esquecer.

O país e eu perdemos a ditadura, o inimigo comum que nos unia, e em vez dele ganhámos interesses diferentes que nos separam. Velho para cima dos sessenta, eu quero manter, guardar, conservar. O Portugal de hoje, metamorfoseado em jovem desastrado, quer gastar e gozar. Vive de empréstimos, viaja de Nikes e mochila, tapa os ouvidos com o Walkman. Ele procura o ruído, eu busco a quietude. Cada casa grande de granito secular em ruínas é para mim uma dor. Ele festeja com música e foguetes os provisórios gavetos de betão que sobre essas ruínas constrói. Vistos do ar, os estaleiros das autoestradas que o entusiasmam e vão aproximar da Europa rica, aparecem-me como outros tantos caminhos de perdição.

No íntimo arreigou-se-me o temor de que o “meu” Portugal, aquele que me é querido, o Portugal que espera, parece lenta e fatalmente ir-se desintegrando.