quinta-feira, março 19

Pausa no vírus


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Ao acaso dei com a "Selecta Literária" do meu terceiro ano do liceu. Abri e voltei a ler
"A Moleirinha" de Guerra Junqueiro:

 Pela estrada plana, toc, toc, toc,
Guia o jumentinho uma velhinha errante.
Como vão ligeiros, ambos a reboque,
Antes que anoiteça, toc, toc, toc,
A velhinha atraz, o jumentito adiante!...

Toc, toc, a velha vae para o moinho,
Tem oitenta anos, bem bonito rol!...
E comtudo alegre como um passarinho,
Toc, toc, e fresca como o branco linho,
De manhã nas relvas a córar ao sol.

Vae sem cabeçada, em liberdade franca,
O gerico russo d'uma linda côr;
Nunca foi ferrado, nunca usou retranca,
Tange-o, toc, toc, a moleirinha branca
Com o galho verde d'uma giesta em flor.

Vendo esta velhita, encarquilhada e benta,
Toc, toc, toc, que recordação!
Minha avó ceguinha se me representa...
Tinha eu seis anos, tinha ella oitenta,
Quem me fez o berço fez-lhe o seu caixão!...

Toc, toc, toc, lindo burriquito,
Para as minhas filhas quem m'o dera a mim!
Nada mais gracioso, nada mais bonito!
Quando a Virgem pura foi para o Egipto,
Com certeza ia n'um burrico assim.


Toc, toc, é tarde, moleirinha santa!
Nascem as estrellas, vivas, em cardume...
Toc, toc, toc, e quando o galo canta,
Logo a moleirinha, toc, se levanta,
P'ra vestir os netos, p'ra acender o lume...

Toc, toc, toc, como se espaneja,
Lindo o jumentinho pela estrada chan!
Tão ingenuo e humilde, dá-me, salvo seja,
Dá-me até vontade de o levar á egreja,
Baptisar-lhe a alma p'ra a fazer cristan!

Toc, toc, toc, e a moleirinha antiga,
Toda, toda branca, vae n'uma frescata...
Foi enfarinhada, sorridente amiga,
Pela mó da azenha com farinha triga,
Pelos anjos loiros com luar de prata!...


Toc, toc, como o burriquito avança!
Que prazer d'outrora para os olhos meus!
Minha avó contou-me quando fui creança,
Que era assim tal qual a jumentinha mansa
Que adorou nas palhas o menino Deos...

Toc, toc, é noite... ouvem-se ao longe os sinos,
Moleirinha branca, branca de luar!...
Toc, toc, e os astros abrem diamantinos,
Como estremunhados cherubins divinos,
Os olhitos meigos para a ver passar...

Toc, toc, e vendo sideral tesoiro,
Entre os milhões d'astros o luar sem veo,
O burrico pensa: Quanto milho loiro!
Quem será que moe estas farinhas d'oiro
Com a mó de jaspe que anda alem no ceo!...
Novembro de 1889