Palavra que não é pelo facto de que
não vai demorar muito a que preste contas ao Criador ou me queira mostrar
melhor do que sou, mas nestes últimos tempos tenho de vez em quando uns acessos
de bondade que me surpreendem, porque nunca fui muito de perdoar a bandalhos nem
me fingir mais generoso do que sou.
Este deve ter nascido em mau
signo. Ao longo da vida, sempre alerta para onde estava a vantagem ou de que
lado soprava o vento, foi refinando a pulhice, se bem que por erro de cálculo ou
excesso de manha se tenha por vezes embrulhado em maus lençóis, situação de
pouco dura, pois tal um sempre-em-pé logo se levantava a preparar novo golpe.
Tenho com ele umas contas antigas
ainda por ajustar e devo dizer que numa ou noutra ocasião me pergunto se não
estará na hora, mas depois por preguiça ou assunto urgente vou adiando, encolho
os ombros, guardo para outra altura.
Tempos atrás, a rebuscar na
desordem da minha papelada encontrei uns quantos documentos que tinha esquecido
ou feito por esquecer, e num acesso de saudável fúria nem pensei duas vezes, meti-os
numa caixa e colei-lhe uma etiqueta com a morada do meu pulha de estimação.
Como já não eram horas de ir ao
correio ficava para o dia seguinte, encolhi os ombros, perguntando-me o que
adiantava, uma voz a sussurrar-me que deixasse ficar, esquecesse, não valia a
pena nem o dinheiro dos selos, e quem sabe se o pobre diabo não teria de vez em
quando horas de remorso.
Desfiz o embrulho, rasguei a
papelada, foi então que me tomou um dos acessos de bondade de que atrás falo,
perguntando-me por que carga de água estava a mexer naquilo, pois dando-me
conta do que terá sido a sua vida, os medos que sentiu, as humilhações que deve
ter sofrido para sobreviver, as vezes que teve de se ajoelhar, há muito lhe
perdoei e a falar verdade até me merece simpatia. Por isso lhe desejo que viva
em paz e as maldades que fez lhe sejam descontadas em razão do que passou, os
revezes que sofreu, e sobretudo a dor de não ter realizado o muito que podia
com as qualidades que Deus lhe deu.
