sábado, outubro 19

O nobre da Catalunha


Até certo ponto, o contar histórias e inventar personagens é actividade de risco, o qual aumenta quando se publicam num jornal, pois há sempre alguém que julga reconhecer-se no acontecido, sente ofensa, e em casos extremos não hesita em pedir contas ao autor. Uns ficam pelo  insulto, outros ameaçam com esperas, garantindo que não hesitarão em chegar a vias de facto, mas de modo geral é mais trinta e um de boca do que perigo sério, a raiva amansa e como Eça apontou, porque somos meridionais, “das nossas terras palreiras da vanglória e do vinho”, o caso esquece.
Felizmente assim é, porque se por um lado não resisto a contar a metamorfose do Gilberto (pseudónimo), sentiria verdadeira pena se viesse a perder a sua amizade, embora essa hipótese não seja grande, pois como ele gosta de dizer nunca pega num jornal, e além disso há anos que vive longe e isolado nos confins da Galiza, para onde o levou o casamento e o gosto por uma Natureza rude que, segundo ele, já não se encontra em Portugal nem mesmo no Gerês onde nasceu.
Vai para meio ano que o Gilberto quebrou inesperadamente um longo silêncio, surpreendendo-me com um e-mail em que me dava conta de que depois de muita pesquisa nos sites de genealogia na internet, em particular os dos mórmons, tinha descoberto que um dos seus trisavós nascera em Barcelona e fora aparentado com as famílias dos Mercader, dos Besall, dos Companys e mais umas quantas da nobreza catalã.
Recordo que respondi com aquele excesso de entusiasmo que esconde a indiferença, levando a hipocrisia ao extremo de lhe pedir que me mantivesse ao corrente das investigações, pois era louvável que honrasse a memória dos seus antepassados.
Bem me arrependo agora, mas como se costuma dizer o futuro a Deus pertence, longe estava eu de imaginar as consequências do meu fingido interesse. É que tendo descoberto em mim o interlocutor ideal para a sua obsessão, ele passou a bombardear-me com os detalhes das suas pesquisas, não me poupando sequer as datas dos ficheiros, os números de registo de actas e processos, cópias de contratos de casamento, links para a consulta de jornais antigos que relatam o que foi o poderio da sua gente.
De vez em quando deixo passar uns dias antes de responder, esperançado de que ele veja no atraso o discreto sinal do meu limitado interesse, mas essa estratégia resultou contraproducente, pois anuncia agora que um destes dias me vem visitar e, para que não duvide de quem ele agora é, trará consigo o esboço do brasão.