quarta-feira, outubro 16

Harold Bloom

(Clique)
 
Com uma velocidade de leitura entre as 50 e 60 páginas por hora julgava-me quase um campião, mas Harold Bloom (1930-2019) o grande intelctual falecido anteontem e a quem muito devo pelo que com ele aprendi, lia à velocidade de 400 (sim, quatrocentas).
Como provavelmente nem todos recebem o Macroscópio de José Manuel Fernandes do Observador (a quem agradeço), copio-o aqui por inteiro, certo de que a sua leitura será de proveito para muitos.

Macroscópio
Por José Manuel Fernandes, Publisher

“Tinha 89 anos e era seguramente o crítico literário mais popular das últimas décadas. Professor em Yale, onde ainda dava aulas, Harold Bloom morreu esta segunda-feira e com ele também desapareceu a mais desassombrada voz que defendia o “cânone ocidental”, isto é, uma herança literária e cultural milenar cuja grandeza celebrou como poucos. Isso mesmo faz num dos dois únicos livros disponíveis no mercado português – O Cânone Ocidental - Os grandes livros e os escritores essenciais de todos os tempos –, uma bibliografia curta já que foi um autor prolífico e um leitor insaciável (o outro livro traduzido para português é Génio – Os 100 autores mais criativos da história da literatura).

Para se ter uma ideia das suas capacidades basta citar o que dele se escrevia no Telegraph aquando da edição do seu último livro, The Anatomy of Influence: “For Dante, notes Harold Bloom, the “perfect human age” was 81 (9 times 9), and if the author of the Commedia had reached that milestone, rather than dying at 56, he believed “he would have comprehended everything”. Bloom himself will be 81 this month. Blessed with a reading speed of 400 pages an hour and a memory as sticky as flypaper, though he might not know everything, he is one of very few living critics who could reasonably claim to have read everything that matters.”

Controverso por se recusar a seguir as modas literárias, polémico por ser capaz de criticar livros de vendiam milhões de exemplares, ele próprio autor de best-sellers, a sua morte não passou despercebida à imprensa anglo-saxónica, do New York Times – “Professor Bloom was frequently called the most notorious literary critic in America. From a vaunted perch at Yale, he flew in the face of almost every trend in the literary criticism of his day. Chiefly he argued for the literary superiority of the Western giants like Shakespeare, Chaucer and Kafka — all of them white and male, his own critics pointed out — over writers favored by what he called “the School of Resentment,” by which he meant multiculturalists, feminists, Marxists, neoconservatives and others whom he saw as betraying literature’s essential purpose.” – ao Washington Post – “In the 1950s, Dr. Bloom opposed the rigid classicism of Eliot, but in the following decades, he condemned Afrocentrism, feminism, Marxism and other movements he placed in the “School of Resentment.” – passando pelo The Guardian – “His greatest legacy could well outlive his own name: the title of his breakthrough book, The Anxiety of Influence. Bloom argued that creativity was not a grateful bow to the past, but a Freudian wrestle in which artists denied and distorted their literary ancestors while producing work that revealed an unmistakable debt.

Como se percebe por este apanhado, Harold Bloom não era consensual nem procurava ser consensual, algo que Luís Miguel Queirós notou no texto que escreveu no Público, Morreu Harold Bloom, o polémico guardião do cânone ocidental: “E se a academia torce o nariz tanto às opiniões como à popularidade de Bloom, que crê interligadas, o crítico responde na mesma moeda. Na já referida entrevista ao PÚBLICO, diz: “Aí por 1990 cheguei à conclusão de que não valia a pena escrever para um único académico. (…) O que me dá forças para viajar tanto, nesta idade, é que, em todo o lado onde falo, me aparecem verdadeiros leitores. São brancos, negros e asiáticos, são homossexuais e heterossexuais, são velhos e novos, ricos e pobres. São leitores. Pessoas completamente indiferentes a todo esse lixo que se ensina nas universidades”.

No Observador Carlos Maria Bobone dava algumas pistas para essa originalidade em Harold Bloom e o encanto quase sagrado da literatura: “O que interessa em Génio e em O Cânone Ocidental é precisamente a leitura não canónica do cânone; aquilo que a sua doutoranda Camille Paglia fez em Personas Sexuais – a reorganização da ideia de sexualidade através de tipos diferentes de personalidade – vem daquilo que Bloom fez com a literatura. A sua organização dos grandes autores pelo tipo de génio, em que se pode associar Freud ao livro de Job e Boswell a Thomas Mann, tem o interesse de olhar para o Cânone, não no sentido histórico, mas na intemporalidade dos espíritos e das ideias de cada autor.”

(Pequeno parênteses para referir o que Harold Bloom, autor de "O Cânone Ocidental", escreveu sobre Fernando Pessoa e que hoje o Observador recuperou, nomeadamente esta passagem: “Pessoa não era nem louco nem um mero ironista; é Whitman renascido, mas um Whitman que dá nomes separados a «o meu eu», «o eu verdadeiro» ou «eu, eu mesmo», e «a minha alma», e escreve maravilhosos livros de poemas para os três, assim como um volume à parte com o nome de Walt Whitman. Os paralelos estão demasiado próximos para serem coincidências, em particular porque a invenção dos «heterónimos» (um termo de Pessoa) se seguiu a uma imersão em Folhas de Erva. Walt Whitman, um dos duros, um americano, o «mim mesmo» de Canto de Mim Mesmo, torna-se Álvaro de Campos, um engenheiro naval português e judeu. O «eu verdadeiro» ou «eu, eu mesmo» torna-se o «guardador de rebanhos», o poeta pastoril Alberto Caeiro, enquanto a alma whitmaniana se transmuda em Ricardo Reis, um materialista epicurista que escreve odes horacianas.”)

Voltando à obra de Bloom, vale a pena recuperar alguns textos relativos a alguns dos seus últimos livros, como o já referido Génio, um grosso volume em que faz pequenos retratos de 100 escritores, o que levou o recenseador do New York Times, Judith Shulevitz, a intitular a sua crítica The Hall of Fame. Mesmo assim nela escreve-se que “Bloom's own genius is not for scholarship but for rekindling an ancient sense of awe, for restoring to us an awareness of literature's uncanny, unspannable distance from ordinary life. Bloom sees literature in half-Greek, half-Gnostic terms: it is, first, a Promethean theft by which humans usurp what belongs to the gods, and, second, a sort of heresy by which authors create characters who are richer and more alive than mere mortals could ever be.”

Mais marcante é a sua última obra, que é como que o seu testamento intelectual, The Anatomy of Influence: Literature as a Way of Life. Sobre ela, em The Faith of Harold Bloom, escreveu-se na New York Revies of Books que “When the academic study of literature succumbed to what Bloom calls the “storm of ideology” in the 1980s and 1990s, he unleashed his wrath upon the School of Resentment, defending the independence of imaginative literature and decrying its reduction to the status of social documentation. The Western Canon (1994) in particular was an aggressive counterassault on some of the ideological froth that was passing for literary criticism in American universities.” E Sam Tanenhaus, no suplemento de livros do New York Times, de que era então editor, no longo texto Harold Bloom: An Uncommon Reader, recorda que esta obra derradeira acaba no fundo por remeter e regressar à obra seminal do autor, “The Anxiety of Influence: A Theory of Poetry”: “Published in 1973, it remains, with the possible exception of Northrop Frye’s “Anatomy of Criticism” (to which Bloom’s new book pays sly if debunking homage), the postwar era’s most original work of criticism, still spellbinding and bewildering. Bloom’s primary insight was that contemporary literary study imputed a false benignity to the act of poetic invention, when in reality it grew out of competitive struggle, pitting young poets against their elders.

Num registo mais entusiasmado, Andy Martin, do britânico The Independent, conta em The immortal Harold Bloom, the greatest literary critic on the planet como foi o seu encontro com o seu herói intelectual, alguém que até então só conhecia dos livros: “For a few decades, I had only read Harold Bloom. Such landmark works as The Anxiety of Influence (the agonistic struggle of poets with their major influences, eg Wordsworth vs Milton, Plato vs Homer) and The Book of J (his hypothesis that certain chunks of Genesis and Exodus were written 3,000 years ago by a woman, perhaps a princess and daughter of Solomon, and woven into the Pentateuch). And then, on a vaster scale, The Shadow of a Great Rock, his literary appreciation of the entire Bible, and Shakespeare: the Invention of the Human.” Vale a pena ler o resultado da conversa, de que deixo esta passagem: “The whole point of “imaginative literature”, he argues, is the creation of vehement personalities, diverse characters, “distincts”. The phrase he uses about Shakespeare’s characters is that they are all “artists of themselves”, they appear self-created, fully autonomous. But here is the thing, and this is the only way to make sense of his inventing-the-human, they have (in part) created us, now. All those great Shakespearean figures have so hugely impacted on our consciousness of what it means to be human, that they have affected our concept of ourselves, and therefore shaped us, in another millennium, since we are what we think we are, up to a point.

Mas como referi de início, Harold Bloom era polémico e desabrido – ficou célebre, por exemplo, a sua devastadora crítica dos livros de Harry Potter, publicada no Wall Street Journal, Can 35 Million Book Buyers Be Wrong? Yes., onde assumia que “Taking arms against Harry Potter, at this moment, is to emulate Hamlet taking arms against a sea of troubles. By opposing the sea, you won't end it.” – assim como todos conheciam o seu desprezo pelos circuitos académicos, algo que assume numa entrevista a Jennie Rothenberg Gritz, de The Atlantic, Ranting Against Cantonde conta: “I left the English department twenty-six years ago. I just divorced them and became, as I like to put it, Professor of Absolutely Nothing. To a rather considerable extent, literary studies have been replaced by that incredible absurdity called cultural studies which, as far as I can tell, are neither cultural nor are they studies. But there has always been an arrogance, I think, of the semi-learned.

Para ele o exercício da crítica nasce uma lógica: “I believe firmly that, in the end, all useful criticism is based upon experience. An experience of teaching, an experience of reading, one's experience of writing—and most of all, one's experience of living. Just as wisdom, in the end, is purely personal. There can be no method except the Self.” Não surpreende por isso que tenha dado brado a entrevista que deu em Maio de 2001 ao Público, e que pode ser lida descarregando o pdf da edição em papel de então. O título parece dizer quase tudo – “Agora temos obras-primas de lésbicas esquimós” – mas nas verdade ele foi muito mais longe na denúncia da perversão dos critérios de avaliação do valor literário de uma obra:
Agora temos obras-primas de lésbicas esquimós. A minha mulher não gosta nada que eu diga isto. É uma coisa que vai chegar aqui. […] Vão dizer muito bem de poemas terríveis, apenas porque são escritos por lésbicos de Cabo Verde. […] Sou um dinossauro, uma espécie extinta. Há muito que a guerra nas universidades está perdida. Vou contar-lhe uma experiência muito interessante. Há três anos, fui dar umas conferências à Universidade da Califórnia, que é muito politicamente correcta. […] Estava a dar uma conferência, quando a sala literalmente explodiu. Queriam mesmo linchar-me, só porque eu, finalmente, disse a verdade. Virei-me para eles e disse-lhes: ‘Muitos de vocês, nesta sala, são professores de Literatura, mas não gostam realmente de literatura. Se comprarem uma mesa a um carpinteiro que por acaso é mexicano-americano, ou marxista, ou homossexual, e ele vos entrega uma mesa com as pernas a cair, vocês devolvem-na e exigem o vosso dinheiro. Mas estão mais do que dispostos a aceitar livros sem pernas. São completamente hipócritas. Há quotas [nos EUA] para mulheres, negros, mexicanos e homossexuais nas faculdades de Direito e Letras, mas não na de Medicina. Sabem porquê? Porque se vocês, os politicamente correctos, estiverem numa mesa de operações para ser operados ao cérebro e a médica que vai fazer a cirurgia for uma negra lésbica devastadoramente atraente – tento ser o mais ofensivo possível – que, explicam-vos, se qualificou com base na sua origem étnica e orientação sexual, todos vocês saltam imediatamente dali para fora’. Começou tudo a gritar comigo. ‘Racista! Fascista!’ E eu respondi-lhes, também aos berros: ‘Vocês são um nojo, são degradantes. Não têm qualquer argumento racional para opor ao que eu digo. São uns vigaristas. Todos vocês saltavam da mesa de operações’. Foi uma guerra. Mas haverá alguma ideia socialmente mais repugnante do que pretender que é mais benéfico para uma jovem cabo-verdiana que vem viver para Portugal ler obras dos seus compatriotas, por más que sejam, do que Eça ou Almeida Garrett? Outro dia fui falar de cinco dos meus poetas preferidos: Whitman, Pessoa, Lorca, Hart Crane e o maravilhoso Luís Cernuda. São todos homossexuais, mas que me interessa saber se eles preferem dormir com homens ou mulheres?”

Acho que já percebem porque era polémico, porque não era muito popular no mundo académico mas os seus livros vendiam-se e vendem-se como pãezinhos quentes. É mais um que nos deixa saudades e cuja palavra nos vai fazer falta. Entretanto, se não leram Harold Bloom, é sempre boa altura para começar.”