domingo, março 3

O dom do rei Midas



Porque desse nobre desporto só entendo o mínimo, não me deixo arrastar para conversas de futebol, como também evito tomar partido em discussões sobre política, porque é certo e sabido como a paixão desanda certas cabeças, resultando daí consequências que todos conhecemos. Questões de família também facilmente se prestam a desentendimentos e animosidades, de maneira que as mais das vezes deitamos mão aos temas clássicos do estado do tempo, as preocupações com a saúde, a subida dos preços, um ou outro mexerico.
Mas se há assunto que facilita a conversa e exalta os ânimos, esse é certamente o do dinheiro, não o dinheiro dos que estiverem presentes, entenda-se, mas aquelas somas absurdas dos grandes escândalos de corrupção, das negociatas, da falência dos bancos, a facilidade com que depois do choque tais casos vão deixando de interessar, para finalmente aceitarmos que são prova da cansada verdade do manda quem pode.
Tempos atrás éramos um pequeno grupo na esplanada, discutia-se que o mais certo é não tardar a que o país fique outra vez de tanga, e nos vejamos a apertar o cinto, quando o Silvino, sempre brincalhão, disse que tinha sido uma imperdoável asneira o que fizeram ao DDT, porque esse senhor, um verdadeiro rei Midas, é que poderia ajudar, pois tudo o que tocava transformava-se em ouro.
Ao Silvino perdoa-se muito. Por ser amigo e porque o sabemos sem malícia, o que não impede acharmos que de vez em quando força a nota, e por certo foi essa a razão do modo azedo com que o Cerqueira lhe perguntou se do rei Midas só conhecia esse dom.
Ora acontece que se o Silvino, além de tímido por natureza ainda sofre por não ter terminado o liceu, o Cerqueira é todo cheio de si mesmo, um nadinha arrogante, sempre pronto a lembrar os seus dois mestrados e o doutoramento em Ciências Sociais.
- Pois enganas-te, porque a história não é tão simples como isso. Acredita que o banqueiro de certeza todos os dias dá graças por não ter recebido o dom do rei Midas. E sabes porquê? Tocava na mulher com o dedo, adeus mulher, tornava-se ela uma estátua. Fazia festas ao cão, adeus cão. Tinha sede e pegava num copo para beber água, adeus copo, adeus água. Tudo ouro sólido, vinte e quatro quilates! Imaginas o martírio?
O Silvino abanou a cabeça, dizendo que sim, imaginava, mas isso eram histórias de antigamente, e na Grécia. - Cá é diferente – continuou – e fico na minha. O país não precisa de políticos pelintras, mas de um DDT que roube à grande. Porque então dá pra todos.