segunda-feira, abril 27

Razões de queixa

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Com razão ou sem ela, e sobra de motivos reais ou imaginados, chega sempre a hora em que nos queixamos da vida que temos.
Única sobrevivente entre os trinta passageiros e os tripulantes do pequeno avião que em 1992 se despenhou na selva do Vietnam, Annette Herfkens veio a si segurando a mão do namorado e rodeada de cadáveres, incapaz de se mover por ter quebrado ambas as ancas.
Conseguiu arrastar-se pelos cotovelos até uma distância onde deixasse de sofrer o odor da podridão e não visse os vermes que em pouco tempo tinham começado a sair dos olhos de um cadáver ao seu lado. Oito dias sobreviveu sem comida e bebendo água da chuva. No sexto avistou um camponês a certa distância e gritou, acenou, mas o homem desapareceu sem lhe dar ajuda. Viu-o de novo no dia seguinte, olhando-a imóvel. Só à terceira vez apareceu com outros aldeãos, vindo mais tarde a saber-se que não se tinha aproximado por julgar que ele fosse um espírito.
Meses depois, já na Holanda, mas ainda numa maca, pôde assistir ao funeral do namorado, uma bela e comovente cerimónia, "dando-me a impressão de que casava com um morto". O choque viria mais tarde, quando se descobriu que o defunto no caixão era um passageiro inglês, e que, em consequência de um engano, o seu namorado tinha sido cremado na Suécia.
Numa entrevista com o semanário neerlandês Elsevier, donde estes factos são retirados, Annette Herfkens conta ainda como o seu casamento falhou, em consequência de ter um filho autista (*), acrescentando: "A vida torna-se mais fácil quando abandonamos o ego. Graças ao que desde o desastre me tem acontecido, é que me dou conta da beleza da vida."
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Annette Herfkens (1962) estudou Direito em Leiden, é directora do Banco Santander em Nova Iorque e acaba de publicar Turbulence: A True Story of Survival. A fotografia é de Matt Carr.

(*) Segundo uma estatística, isso acontece em 85% dos casamentos com um filho autista.