quarta-feira, maio 16

O Cayenne dourado

Podia ver e esquecer, mas cenas destas arrasam qualquer coisa dentro de mim, talvez que contando-as faça o exorcismo e consiga deitá-las para o lixo da memória.
Feira na vila. Pouca animação.
- Isto está cada vez mais murcho – diz o senhor que atravessa comigo na passadeira.
E nesse momento ambos nos detemos, porque o condutor do Cayenne, ou não nos viu, ou é bruto, dá uma guinada para estacionar e só por milagre lhe escapamos.
Salta de lá, pimpão, rebolando os ombros, repuxando as calças, a cara-metade a reboque, também ela pimpona e aperaltada.
O meu companheiro conhece-os e informa: são da aldeia X, estão na Alemanha, ela ganha muito bem nas limpezas, e ele é qualquer coisa numa fábrica.
Digo comigo que, de facto, deve ser qualquer coisa, coche assim não o tem qualquer nem quem quer.
Vaidoso, como se fosse coisa sua, o senhor quer que eu pare e aprecie:
- Já viu a colcha?
Seria impossível não reparar na colcha branca de croché que enfeita e protege o assento traseiro.
- E as almofadas?
Também vi. Grandes, arcos-iris de seda, numa o Sagrado Coração, a Virgem de Fátima a abençoar na outra. Do retrovisor pende um rosário de contas grossas, um crucifixo.
Supondo-me entendido, o senhor, de aspecto pessoa simples, provavelmente lavrador, sugere que num carro daquela cor deve entrar ouro.
- Que lhe parece?
Digo-lhe que sim, que também me parece, e despeço-me, tirando respeitosamente o boné à pessoa e a tão santa ingenuidade.
Vejo o par momentos depois, junto da carrinha do "Rei do Pito", quando já embrulham o frango e as batatas assadas.
Volto a vê-los na carrinha de bebidas. Ela, de braços cruzados, mal equilibrada nos tacões e no aperto da minissaia, aguarda paciente que o senhor seu esposo acabe de beber. Ele acaba, chupa os lábios consolado, deposita o copo de plástico nos braços cruzados da madame e, com um gesto altaneiro do queixo, aponta-lhe o caixote do lixo