terça-feira, junho 30

Alma, fígado e Moon Walk

Uma boa dose de indiferença ajuda o bem-estar da alma e a saúde do fígado. O problema é que a indiferença, a genuína, tem de ser de fabrico próprio, não se compra em pílulas ou injecções.
Nesse particular da indiferença, confesso, encontro-me abaixo da média. Antes de me dar conta do que acontece e accionar o necessário travão, já o humor se me azeda.
Oiço um coreógrafo fazer estas afirmações profundas: "O homem é um ente desesperado, muito preso ao ser. Nasce e morre. Entretanto procura-se a si mesmo, cercado por uma natureza indiferente."
Essa convicção leva-o a que, no seu último bailado, os bailarinos e bailarinas dancem num palco quase às escuras, para que não se distingam os homens das mulheres, e assim , "sem o preconceito do sexo, o espectador se dê conta da libertação de energia".
Pergunto-me: não seria mais saudável e mais de adulto – para não dizer de sábio ancião – atentar nestas coisas com um sorriso de indiferença? Pois seria. E mostrar-me também complacente para com o amigo, passado dos cinquenta e idólatra de Michael Jackson, que numa voz perturbada me confessou ressentir a morte do cantor como uma tragédia pessoal.
Despedi-me apressado, temendo que ali na esplanada, e naquele estado de espírito, me presenteasse com uma interpretação do Moon Walk

segunda-feira, junho 29

Parkpop


No passado fim-de-semana mais de 275.000 tomaram parte no Parkpop, o maior festival de música pop ao ar livre na Europa. Grande e grátis.

Durante dois dias e noites um ajuntamento de mais de um quarto de milhão de pessoas nada mais fez do que ouvir música.

Sempre me desagradaram as multidões e desconfio dos êxtases e entusiasmos colectivos. Um fenómeno como o Parkpop, em vez de me alegrar, acorda em mim a desconfiança e o medo do rebanho.

domingo, junho 28

Sitemeter

Passadas quatro décadas desde que foi publicado o meu primeiro livro, dou-me conta da interessante diferença que existe (ou eu faço) entre o leitor da minha prosa e o leitor/visitante deste blogue.

Tirante as excepções de um esporádico contacto postal ou pessoal, o primeiro sempre foi para mim uma presença traduzida em números. Tantos exemplares vendidos, tantas pessoas que sabem da minha existência. Por vezes, o acaso de uma janela aberta deixa entrever uma estante, e posso perguntar-me se porventura haverá ali um livro meu, mas passo adiante. Noutras ocasiões um desconhecido refere que leu algo de mim, sorri, e perde-se na multidão. Grosso modo o contacto não vai mais longe.

Com este blogue, porém, a situação é diferente. Umas vezes um pouco mais, outra vezes menos, anda em média à volta da centena o número de visitantes diários, e é felizmente escasso o número daqueles que por e-mail me contacta. Digo felizmente porque, fossem muitos, não lhes poderia responder.

Com todos, porém, estabeleço uma curiosa e anónima relação de sentido único. Graças ao Sitemeter, e ao contrário do leitor dos meus livros, sei em geral onde se encontram, a que horas me procuram, quantas e quais páginas leram.

O ritual da minha visita nocturna ao Sitemeter dispara então a fantasia. Em Lisboa, no Mato Grosso, na Califórina, Viseu, Alemanha… Quem será ? Mulher? Adolescente? Homem? Que fará? Por que terá vindo?

Entro assim num jogo de imaginar pessoas e atitudes, lugares, ambientes, estabeleço com esses anónimos um impossível diálogo, tornam-se eles para mim uma companhia que, não sendo por inteiro concreta, ultrapassa o virtual.

sábado, junho 27

Ftalates

Está você na força da vida, tem planos para procriar e perfuma-se em demasia? Aftershave, colónias, essências disto e daquilo?

Fique a saber que corre o risco de que a sua esperma seja umas cinco vezes menos fértil do que a do sujeito que não se perfuma. Causam isso os "ftalates" ((C8H4O4R1R2) grandes perturbadores do equilíbrio hormonal, usados para que o perfume se mantenha mais tempo activo.

Ao que parece o efeito nocivo é conhecido há muito. Mas agora a indústria dos perfumes promete que vai fazer o possível para resolver.

Não se assuste. Deixe o perfume, e até pode acontecer que ela goste mais de si.

sexta-feira, junho 26

Chá

Hesitei uns dias, porque não sabia – e ainda não sei – qual a melhor ponta por onde lhe pegar.

O presidente Medvedev esteve em Amsterdam para inaugurar a dependência do Hermitage de São Petersburgo e o protocolo ofereceu-lhe uma volta de barco pelos canais.

Na Holanda há aquele entranhado mito de que, cidadãos, somos todos monotonamente iguais. Por conseguinte, se você faz o chá com um saquinho, o primeiro-ministro faz igual, e não vá o presidente da Rússia julgar que é mais do que nós, diferente, ou melhor. Se quer chá faça-o ele próprio mergulhando o saquinho na água quente.

Na Holanda há também aquela virtude de fazer tudo simples e baratinho. Uma fatia do bolo chega. O bolo inteiro seria um impensável desperdício.

Guardanapos? Os de papel são bons para mim, para si, para presidentes e majestades.

Na certeza de que faz como deve ser, o primeiro-ministro Balkenende prepara o chá e já comeu metade do doce. O presidente russo não tocou em coisa nenhuma. Se não me engano, o ar com que olha é de divertida ironia.

Felizmente que no dia seguinte viajou para o Egipto, terra de grandes desigualdades e faraós, mas onde, desde pequenos, todos aprendem a tomar chá.

quinta-feira, junho 25

O macroacto ilocutório

Os novos não querem ouvir, não se interessam, diz ele. Eu tãopouco o quero ouvir e dispensava a conversa, mas tem-me ali como refém, o remédio é aturar.

Se bem compreendo gostaria de escrever uma espécie de "Carta de Guia de Casados", dirigida a um certo tipo de rapaz que, nestes tempos de ascensão feminina, lhe parece mal preparado para o casamento.

Sabia eu que há um tipo de mulher que parece incapaz de apagar as luzes e as deixa sempre acesas, às vezes de dia e de noite? Sabia eu que muitas mulheres têm o sono inquieto, e isso se reflecte no descanso nocturno do cônjuge? Que há mulheres que, devido às espinhas, não gostam de peixe? Que está cientificamente provado que uma mulher demora até cinco vezes mais do que um homem a fazer compras no supermercado? Que logo nos primeiros meses do casamento um grande número de mulheres hostiliza abertamente os maridos? Que certas mulheres…

Perco-me com a lista, distraio-me, o pouco que me resta de atenção foca-se no seu vocabulário: falou de "cônjuge", diz que quer "tanger a questão", "delimitar as possibilidades", "optar por um claro estatuto metaenunciativo"…

E porque estudou o que se chama ciência da literatura, atira-me com a necessidade de no futuro livro "desenhar, num macroacto ilocutório, a orientação configuracional do discurso."

Sinto ouras. Deixei de ouvi-lo. Esforço-me em vão por recordar se é casado.