domingo, setembro 7

Arraial

- O senhor vai à festa?
O senhor sou eu, ela estende-me os cinco mil réis que lhe peço e que atiro para dentro do bolso, desapontado com a miséria que nem para tabaco chega.
- Se ao menos pensasses!... – mas não remata, a temer a cena.
Porta fora e sinto-me menino, levado pelo cheiro do milho alto, pelos foguetes, pela alegria que a noite dá. De corrida, como se não pudesse chegar tarde para me encostar a ver os que passeiam. Que é isso a festa, um mar de gente a voltear entre a câmara e a igreja, a banda no coreto, as barracas de comes-e-bebes, as luzes, o fogo preso que vai começar. Um ou outro conhecido acena, olhos que se param em mim, a curiosidade de um momento.
Estou de fora, mãos nos bolsos, cigarro, a dar-me um ar que não é meu, invejoso do luxo que alguns mostram, a fingir de ausente, dono de segredos, sozinho. A Célia passa de novo, acena outra vez, sorri, chego perto contra vontade, embaraçado.
- Há que tempos ninguém te vê!
- É. Dois anos.
- Por onde tens andado?
O cigarro que se põe entre os lábios, o sacudir de ombros, a mão que aponta o mundo e se esconde no bolso, envergonhada.
- Por aí… Na tropa…
Não temos que dizer e sorrimos, desajeitados. Quando vínhamos do liceu ela descia em Reboreda, e uma vez que o comboio tinha passado no túnel sem luz eu arriscara um beijo, um nada, brincadeira esquecida que agora está entre nós, trazida pelo silêncio.
- O fogo vai começar.
Despeço-me? Fico? Ela cala-se. Os guardas empurram o povo para fora do largo e, assustada, segura-me o braço.
- O fogo vai começar – repito, porque não sei que dizer e a mão se esquece poisada em mim, mão de mulher, o sonho.
- Vês daqui?
- Nem nas pontas dos pés.
- Queres ir para o quartel?
Rua acima, a Célia presa pela mão para que não caia, rodeamos o quartel, sentamo-nos no muro.
- Chega-te para a ponta.
- Estou bem assim.
Rimos, brincamos às escondidas atrás das palavras. Do fogo não damos conta. E ela abandona a mão, para logo se esquivar, inquieta, como que arrependida.
- Vamos embora.
- E o resto do fogo?
- Não deitam mais.
- Claro que deitam!
- Quem te disse?
Acaricio-lhe a mão, mas porque ela finge que acorda, e finge mal, levanta-se em mim a crueldade. Os olhos são feios, pequenos, suínos, o langor torna-os uma caricatura. A boca, uma rodela de tomate na face branca de tanto pó-de-arroz. Os dedos gorduchos, moles. Enlaço-a pela cintura. Um jogo. Debate-se, empurra-me sem força. O seio escapa, justa medida, duas mãos que ela por um momento deixa encher.
- Está quieto!
- Acautela-te, que podes cair!
- Vamos embora.
- Pois sim.
Ajudo-a a levantar-se, guio-a sobre o muro, salto primeiro a mostrar que não há perigo.
- Salta!
- Tenho medo!
- Eu seguro-te.
Apanho-a nos braços, aperto-a contra mim, esqueço os olhos, esqueço a rodela de tomate colada aos meus lábios, frouxa, sem gosto. A banda começou um paso-doble.
- Não!...
Arrasto-para dentro do campo, baboso, sem pressas, mordendo-a de beijos.
-Lembras-te?
- Hein?
- Aquela vez no comboio?
Não se lembra. Maneira de dizer. Que lhe faço mal. Que a deixe ir embora: - Olha que grito!
Um murmúrio, fraqueja, caminha por onde mando, cautelosa em pôr os pés fora dos sulcos molhados pela rega. Estamos dentro do milho e os ecos da festa vêm doutro mundo, nem pai nem sacramento que lhe acuda.
- Que estás a fazer?
- Nada.
A melhor resposta enquanto a estendo com jeito, a dispo, cuidadoso em não rasgar, apurado como quem tinha tramado de longe.
Tu!...
Não respondo, as mãos procurando o caminho, os ouvidos cheios daquele paso-doble que não acaba.
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(in Montedor, escrito em 1962, publicado em 1968.