sexta-feira, outubro 31

Sobre "Ernestina" - Júlia Costa

 

O silêncio tem nome, chama-se Ernestina. Viveu em Trás-os-Montes, mas podia ter vivido em qualquer aldeia onde o tempo se arrasta como uma mula velha e os homens falam pouco, mas mandam muito. Ernestina não é só a mãe de José Rentes de Carvalho, é a mãe do silêncio português. Aquele que se instala nas cozinhas, nas camas, nos olhos, aquele que não grita, mas que pode matar.

Ernestina não é heroína, é sobrevivente, e isso, à época, neste país, já é quase um milagre. Ela é metáfora da mulher que não teve tempo para ser mulher, da mãe que não pôde ser filha e da vida que não chegou a ser vivida. E o mais absurdo é que há milhares de Ernestinas por aí. Algumas ainda vivas, outras enterradas em silêncio, como se nunca tivessem existido.

J. Rentes de Carvalho. Ernestina

No seu livro, o autor não escreve uma biografia, escreve um exorcismo. Ernestina é a mulher que não teve direito a personagem, nem a enredo. Teve uma vida de espera, de ausência, de dor sem nome. E o silêncio, essa espécie de animal viscoso, foi-lhe fazendo companhia: sentava-se à mesa, dormia ao seu lado, entrava-lhe pelas paredes. Um silêncio que não consola, mas que sufoca.

Mas há algo de profundamente poético nesta dor. Uma beleza áspera, como pedra molhada. Porque o silêncio, quando bem escutado, revela mais do que mil discursos. E este livro escuta, escuta o que nunca foi dito. Escuta o que foi calado por vergonha, por hábito ou por medo. Escuta o que Portugal, talvez ainda não tenha aprendido a dizer.

Rentes de Carvalho não nos oferece redenção, oferece-nos uma crónica da invisibilidade, e fá-lo com uma escrita carregada de palavras antigas e termos em desuso e que parece ter sido lavada com vinagre: ácida, limpa, sem perfume. Cada frase é uma bofetada e cada memória, uma ferida que não cicatrizou. Não há floreios, nem piedade, há verdade, e essa verdade dói porque nos obriga a confrontar o que preferimos esquecer: que a nossa história está cheia de Ernestinas que a literatura, tantas vezes, ignorou.

Este livro é um ato político, não no sentido partidário, mas no sentido mais profundo da palavra, é uma tomada de posição contra o esquecimento, e é também uma provocação: será que sabemos realmente quem foram as mulheres que nos criaram? Ou limitamo-nos a repetir clichés sobre mães abnegadas e esposas discretas?

Ler Ernestina foi resistir ao esquecimento e à indiferença. Foi um convite à escuta, à empatia e à memória, e foi também um alerta: há vidas que só existem se forem contadas e há autores, como o José, o filho da Ernestina e neto da Elisa, para quem escrever é salvar, sendo esses os que nos mostram que, às vezes, escrever sobre quem nunca teve voz é um ato de amor.

 

Júlia Costa é cristã na essência, católica por tradição. Ligada à paróquia da Amadora, na Pastoral Juvenil e na Promoção da Comunidade. Mãe de uma filha, avó de três netos. Profissionalmente na área da contabilidade, embrenhada em números, mas desde sempre fascinada pela palavra.