sexta-feira, janeiro 13

Será o que Deus quiser

 

O café, no outro lado da rua, é estabelecimento de juventude, com música correspondente e fumadores na esplanada, uns quantos encostados à parede, o jeito de quem aguarda coisas que tardam. Coisas que não virão. A pose triste de quem adia, a pose dos desesperos inconfessos e dos medos, dos amanhãs vazios.

Parados no passeio, o lojista, a advogada e eu falávamos da carestia, do ar doente do regedor, do frio que esteve, do cansaço das viagens, mas só quando o lojista se referiu aos filhos é que me dei conta de que, embora de modo distraído, todos tínhamos atentado na cena fronteira.

O mais novo ia muito bem. Estava em Medicina, já no terceiro, direitinho, trabalhador. Mas o outro... Aquele menear de cabeça e os lábios descaídos diziam mais do que palavras, o modo como fechara os punhos falava de fúrias, de raivas impotentes.

Quando a advogada acendeu o cigarro fingimos surpresa. Então já tinha deixado e voltava a fumar?

Ela encolheu os ombros. Divorciada, montes de trabalho, mãe doente, aborrecimentos de sobra, isto e mais aquilo, o tabaco era a sua droga.

- Felizmente, porque às vezes nem sei para o que me dá.

Ouvimo-la calados. Conhecíamos parte da história, as patifarias do ex-marido, as decepções com a família, a advogada brilhante deslocada na mesquinhice provincial.

Ao sacudir a cinza do cigarro apontou para o café, dando a impressão de que ia falar, mas conteve-se. Respirou fundo. As palavras vieram depois, proferidas com a acutilância de quem não é parte no caso e acusa sem paixão.

O que tinha sacrificado pela filha única era desmedido. Por ela perdera a juventude e a carreira, deitara-se culpas sem razão, aceitara sacrifícios, como que se tinha enterrado viva para que à sua menina nada faltasse. Mas em vão. Ia fazer vinte anos. Andara por ali como aqueles. Cafés, clubes, noitadas, Bragança, Salamanca. Jurava que ia passar uns dias com o pai a Lisboa, traziam-lha bêbeda do Porto. Faculdade? Assim que se matriculava logo se arrependia. Comunicação, História da Arte, Estudos Europeus... Mas essa fase estava ultrapassada. De noite era a borga, de dia era a cama.

- Ontem zanguei-me a sério, dei-lhe os safanões. E sabem vocês o que me respondeu? Que não adianta estudar nem trabalhar. Que a vida só vale a pena e só faz sentido quando se tem fama. O resto é uma merda. E que lhe deixasse dinheiro, porque quer ir ver o pai.