terça-feira, novembro 15

Vacas, moinhos e chateza

 

O facto primeiro, talvez o mais marcante, é o de que, ao criar o seu mundo, o holandês logo deu mostras de que a separação original das águas e da terra, descrita no Génesis, lhe parecia sus­ceptível de melhoria.Que essa inventividade lhe tenha cabido por graça divina, ou ele a tenha simplesmente desenvolvido por iniciativa própria, é questão menos interes­sante que a de consider­ar o emprego que, através dos tempos, ele fez de um tão inato pragmatis­mo.

Se nos anais escasseiam as fontes que nos informem sobre os seus tempos primevos, a evolução do holandês acha-se excelente­mente documenta­da desde que deu início à batalha contra os elementos, tornando-se, como se sabe, mestre na prática de tirar benefício do formidável poder dos seus inimigos naturais.

Porém, como se essa luta de certo modo lhe tivesse exaurido a capacidade de combater, a partir do momento em que reteve a água com os diques, e conseguiu domar o vento com as pás dos moinhos, transformou-se ele num ser cuja preocu­pação dominante parece residir num permanente anseio de paz, e a incondicional mantença de harmonias.

Poucos povos se poderão orgulhar, como este, de uma história em que sejam tão poucos os ataques: uma ou duas as invasões. Que no seu chão não consigam pegar as raízes daquele tipo de nacionalismo que descamba em barbárie. Que talvez só no Oriente se pratique com refinamento igual a arte do compromisso e do consenso.

Contudo, no desleixado mundo em que vivemos, as virtudes e a realidade podem menos que o cliché. E o cliché retrata o holandês como um indivíduo por natureza reservado e sombrio, incapaz de paixão, incómodo no trato. O estereótipo quer também que a sua Holanda seja apenas o país onde ele, calçado de tamancos, numa mão o copo de cerveja e na outra o arenque, caminha lentamen­te por entre campos coloridos de tulipas.

Felizmente que contra o lugar-comum há antídotos, e o mais eficaz é por certo o de aprender a ver com o coração. O holandês e a Holanda ganham então dimensões que não suspei­ta quem, apressadamente, superficialmente, apenas sabe ver com os olhos.
E aqui falo por experiência. Uma época houve em que eu próprio tive do país e dos seus habitantes essa estereotipada imagem de buchos-de-cerveja, cabeças-de-queijo, vacas leiteiras atropelan­do-se numa paisagem feita só de horizonte, ponteada aqui e além por um vulto de moinho.

Mas os deuses foram benévolos comigo e deram-me tempo. Sessenta e seis. Mais que o bastante para que aprendesse a ver e me curasse da insensibilidade. Para deixar que o que aos meus olhos parecera informe ganhasse contorno, o aparente­mente vulgar desvendasse um refinamento. Para que eu fosse capaz de discernir a sabedoria por detrás do tédio, e de descobrir que as emoções profundas não necessitam, forçosamente, de grandes gestos ou palavras ribombantes.

Claro que Rembrandt, o genial Van Gogh, sempre tinham sido para mim mais que simples nomes ou referências. Esses e outros, porém, colocava-os eu fora do contexto a que pertenciam: eram mundiais, demasiado grandes para a Holanda da deformada imagem de leite, queijo e chateza que eu então me fazia dela. Mas também aí a força da realidade se foi sobrepondo à ignorância, ou melhor: à minha descuida­da maneira de ver. Até ao dia em que a visão, ajustando-se, conseguiu finalmente tornar nítido o que até então lhe aparecera difuso e de pouco interesse.

Não aconteceu de um dia para o outro, nem foi como nos milagres ou nas grandes revelações: em parte nenhuma soaram trombetas, não houve relâmpagos a iluminar o céu, não apareceram vultos a fazer anúncios. Mas com uma satisfação igual à que devem ter ressentido os navegadores do passado, gradualmente dei-me conta de que conseguira “descobrir” outra Holanda, a verdadeira. Que entre mim e ela se estreitavam os laços que tanto tempo tinham permaneci­do frouxos. Nesse momento, fosse eu poeta, tê-la-ia cantado num poema.