quinta-feira, abril 1

Cio

"Quando a senti pendurada no meu braço — o curioso é que caminhávamos sem trocar palavra, em transe — fui-a guiando pela beira-rio, uma pausa em frente do coreto, e de lá, na calma, uma volta, duas voltas, não fosse haver por ali olhos de espia.

— Quente, hein?

Acenou que sim, continuámos a passear como os outros, jardim acima, jardim abaixo. A cama era o ideal, mas não havia tempo nem maneira, por isso me viera a ideia de levá-la para trás do cais.

Não se dava por achada, caminhando como quem não espera outra coisa, banal, desajeitada, conversa sem pés nem cabeça, palavras atiradas para esconder o pensamento, dar aparências.

E isso mata tudo. Não tínhamos chegado ao cais e já me arrependia, cansado da pieguice do sentimento. Se levantasse a saia era caso entre homem e mulher. Mas havemos de ser muito felizes, o nosso futuro, amo-te… Embrulhava tudo, em vez do delírio que sonhara via-me amarrado a um trambolho que recusava andar.

— Mas para onde é que vamos?

E sem me deixar responder, uma ladainha, não vou dar desgostos aos meus pais que têm tanta confiança em nós, até nos deixam sair à noite, e não me faças mal, não te chegues senão grito, o diabo a quatro.

Enjoei. E não era só da conversa dela. Sim ou sopas, o corpo numa fervura, deixá-la ir era ficar como cão sem osso, ao mesmo tempo que o apetite se esvaía diante da carinha de santa.

— Cria teias de aranha e arranja outro que tas tire! Quem não quer dar não oferece!

Chorou, gritou-me que esperasse, não a deixasse ali sozinha, mas a raiva motorizava-me as pernas.

Veio a correr, pendurou-se em mim, a chorar o resto das lágrimas, que me queria, eu era o mais-que-tudo, outra vez a náusea a subir em mim.

— Vamos embora, Luísa.

Quem disse? Era ingrato! Ela não compreendia! Queria desgraçá-la, fazer-lhe o mal?

— Vamos embora, pode vir gente.

Fazer-lhe o mal e abandoná-la, haviam de apontá-la na rua, tudo por minha culpa. Isso é que era amor?

Eu, que tinha sonhado com uma Luísa em pêlo, a abrir as pernas e o quarto, a dar-se como nos romances, com loucuras, estava ali debaixo da ponte a ouvir baboseiras, encostado a uma pilha de dormentes que fediam a alcatrão.

— Não quero, menina, foi engano.

Pior a emenda. Qual resto de lágrimas! Tinha-a obrigado a porcarias, a deixar-se abusar, em casa, na presença da mãe, falta de respeito, em vez de ajudá-la como tinha prometido.

Gania desatinada, histérica, atrapalhando-se nas palavras.

— Ei! Que é isso? Quem abusou?

— Tu!

Deixei-a à porta de casa como quem se livra de um peso, e esquecera. Mais tarde houve um bocado de escândalo, porque a mãe me esperou à saída do liceu, a perguntar o que tinha feito à filha.

— O que fiz? Nada!

— Nada? Não ficamos assim, não!

Levaram-na ao médico para ver se eu lhe tinha feito o mal. Não tinha. Em todo o caso a fama de mulherengo e abusador ficou, ameaçaram-me de que à primeira que fizesse me expulsavam."

……….

in Montedor – Quetzal, 2014