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Quando falo de mim, quando parece que falo de mim, tenho
em mente os outros. Escondo-me neles, invento-me com tiques alheios, dou-me
virtudes, sensibilidades, manhas e vícios que tornam suportável a minha
simpleza e a monotonia do viver.
Agarro-me aos sonhos que oiço contar. Faço das aventuras
que leio bóias de salvação que, se me não salvam, ao menos iludem e
aliviam da mesquinhez, das repetições, da banalidade e do automatismo.
Posso dizer com verdade que começo o dia em transe,
noutra pele, fingindo-me ausente da rotina dos hábitos e encargos. É outro o
que desanda a chave da porta, abre as janelas, regula o aquecimento, prepara o
pequeno-almoço. É outro também o que espreita o céu a ver o estado do tempo.
Quando me forço a deixar o sonambulismo, tudo se me
afigura estranho, difícil, complicado. É então que me acontece sopesar as
vantagens da morte, a possibilidade que me trará de findar esta existência de
empréstimo, e finalmente, ser eu próprio.