quinta-feira, setembro 15

No consultório



"Isto, doutora, deve ter incubado anos. Sem dar conta, julgando que me sobrava tempo, porque nem sempre o meço pelo calendário. Há ocasiões em que tenho ideia de que me desconheço, sou outro, possesso duns temores que chegam com intentos que raro descubro, mas sempre para meu prejuízo e confusão.
Enfim, paciente, que não sei se vou ter fôlego de levar a conversa até onde quero, ou caio no desalento, o que as mais das vezes acontece. Só que desta seria final, porque não me vejo com vontade  nem forças de repisar, trazendo à lembrança as feições e os nomes, os tiques, o que parecia certeza e era ilusão, noutras vezes certeza mesmo, com efeitos de cacetada.
Ela e estes com quem agora lido não sabem de dores, menos ainda de medo, são de praias e vida mole, hábitos, horários, cafezinho.
Que adianta? Só um tolo sonha em mudar o mundo.
A verdade é que neste ponto tanto se me dá que tenha de carregar o fardo ou seja ela a sofrer-lhe o peso. Voltar atrás é que não volto."