É sabedoria antiga, já cantada pelos Ink Spots na saudosa canção Into each life some rain must fall. De facto não há jeito de escapar a que, quando menos se espera, nos envolva a morrinha dos aborrecimentos. Grandes ou pequenos, uns previsíveis, outros que vêm sem se saber donde, alguns até com uma pontinha de indesejado masoquismo.
Acontece assim que quando há coisa de duas semanas vi a capa do último número da LER, onde se menciona que George Steiner considera António Lobo Antunes um gigante, e a ele, não a Saramago, deviam ter atribuído o Nobel, senti tonturas.
Desde que, uns trinta anos passados, li Language and Silence, George Steiner tornou-se para mim autor obrigatório. Com ele aprendi; as suas ideias levaram-me, por vezes a contragosto, a rever as minhas; muitos dos seus estudos dos clássicos tenho-os eu como dos melhores.
De António Lobo Antunes pouco sei, os três romances que li não me entusiasmaram, mas fora de dúvida é homem notável, escritor muito presente na literatura portuguesa. Chovem-lhe elogios, não lhe escasseiam admiradores e, como só cabe aos literatos de prestígio, com ou sem razão assanham-se sobre ele os invejosos e os detractores. Todavia, em questões de merecida fama literária pouco conta a opinião dos contemporâneos, a dos críticos literários ainda menos, a dos picuinhas universitários nada coisa nenhuma, pois aí manda o tempo e o afastamento.
Ao afirmar que António Lobo Antunes é um gigante – os séculos o dirão – George Steiner não caiu do pedestal onde merece estar, mas quebrou-se-lhe a redoma onde eu ao longo de todos estes anos o mantive. Porque, sejamos razoáveis, se sabemos, para só citar estes, a que craveira chegam Shakespeare ou Tolstoï, e George Steiner sabe-o como poucos, torna-se dolorosa a ligeireza do seu qualificativo.
E vamos lá ver: quantos gigantes há no milénio da nossa literatura? Posso desfiar nomes grandes, mas gigantes? Chamasse eu gigante a Eça de Queiroz, a quem imensamente admiro, logo ele lá de cima atiraria um cínico "Ó menino, tenha juízo!". Camilo, Camões, Pessoa, Bocage, Gil Vicente, Fernão Lopes, gente de grande valia, mas aquém daquele que em minha opinião é o nosso e único gigante literário: o Padre António Vieira.
Já ouvi chamar gigante a Aquilino Ribeiro, a Raul Brandão, a Júlio Diniz, a Alves Redol (lembram-se dele?), a Ferreira de Castro… Até de José Cardoso Pires, que merecia melhor, quando faleceu li nos jornais ter ele sido "o maior escritor do século vinte".
Mas ao fim e ao cabo tudo isto é passageiro, pouca razão tem o incómodo, alegro-me de ter descoberto um argumento para repor George Steiner em redoma igual à que quebrou.
Ignoro em que circunstâncias decorreu a entrevista com a LER, mas estou quase certo de que, à carinhosa e gentil maneira portuguesa, foi durante almoço ou jantar. De forma que Steiner, criado nas brumas inglesas e professor de Oxford, universidade onde se bebe razoavelmente, mas se come do pior, deve ter resistido mal à quantidade dos pratos e à qualidade dos vinhos com que o festejaram.