domingo, julho 6

Alforges (6)

Tempestade

De manhã cedo, antes de sairem de casa, ele tinha dito que era melhor levarem guarda-chuvas, porque o dia não passava sem chover. Uma olhadela ao céu fora bastante para o seu instinto de marinheiro. Aqueles pontinhos cinzentos e negros a acumular-se no horizonte não eram barcos, como tinha dito a sogra a olhar pelo binóculo, mas as nuvens que agora, empurradas pelo vendaval, descarregavam aguaceiros sobre a praia.
O sogro, a vizinha e os miúdos, tinham-se abrigado dentro da barraca. Os outros correram para uma taberna que havia ali perto. Ele e a mulher, por teimosia, como se a chuva os não molhasse, e não fazendo caso da cunhada, que de longe berrava para que se abrigassem, permaneciam sentados na areia, imóveis, encarando-se, tal como se achavam quando a zanga e a tempestade tinham começado.
Nos últimos tempos as brigas eram para eles prato diário, regular e fatal como a acção e reacção das leis da natureza. Uma palavra, às vezes só um gesto, uma toalha caída no chão, um palito numa xícara, um pouco de cinza de cigarro deitada por desleixo num prato - e pronto! - rebentava a zaragata.
Os insultos explodiam. Deitavam-se à cara pecados velhos julgados esquecidos, culpas remotas, birras que datavam da juventude em que se tinham namorado. Mesmo as palavras ternas doutras ocasiões lhes serviam para magoar.
- Não te atrevas, Maria! Olha que um dia mato-te!
Da primeira vez a ameaça teatral a tinha assustado, chegou mesmo a fugir para a rua. Mas daí em diante, mal ele começava aos pulos, a gritar que a esfaqueava, ela ia ao guarda-loiça da cozinha, pegava na faca de cortar o peixe e punha-lha na mão:
- Toma lá!
- Não me tentes, mulher! Não me faças perder a cabeça!
Exagerando o tremor pousava a faca sobre a mesa. Depois as mãos, tensas, a hesitar, remexiam nos bolsos à procura dos cigarros e do isqueiro.
Em geral as desavenças terminavam assim. Ele, em silêncio, oferecia-lhe um cigarro que ela aceitava, acendia-lho, e às vezes iam depois juntos ao café beber uma cerveja: o cessar-fogo entre duas batalhas.
De longe a longe tinha sucedido serem aquelas cenas a causa indirecta de inesquecíveis jantares, e o filho do meio talvez nunca viesse a saber que fora gerado por descuido, depois de uma dessas refeições copiosas, cheias de promessas, de nunca mais, de votos de paz para o futuro.
Continuavam sentados e não parava de chover. Ambos teimosos, ele de calção de banho, a tiritar, ela com um biquíni fora de moda. Ainda se ouvia o trovão, mas os relâmpagos tinham cessado e, no horizonte, o céu mostrava já uma aberta azul.
- Tens lume? - perguntou ele, mostrando os cigarros encharcados.
Ela desatou às gargalhadas e deitou-lhe o braço pelos ombros.