quinta-feira, novembro 11

Salvo pela merda

Filho de gente rica de São Paulo, já nos trinta, Adô (Adônis, na certidão de nascimento) chegara a Paris ao findar da guerra, com a intenção de desenvolver o seu talento de pintor e, uma vez célebre, voltar à pátria, para assim dar lustre à estupenda fortuna ganha pelos seus antepassados no negócio de madeiras e farinhas.

A sorte, porém, tinha-lhe sido adversa. Mau grado duas ou três exposições numa galeria de prestígio, poucas vezes tinha vendido um quadro e, apaixonado por Janine, uma vietnamita, acabara por casar com ela, resultando daí ter o pai – «O meu dinheiro não é para chinas» – cortado imediatamente a mesada que até então lhe permitira viver com desafogo e conforto.

Quando travámos amizade, Adô e Janine viviam num quarto onde a cama, o cavalete, uma cadeira, uma diminuta placa eléctrica e a roupa pendurada numa corda apenas deixavam espaço para que duas pessoas ficassem em pé, mas imóveis.

Desde que uma se quisesse mover tinha a outra de sentar-se ou subir para a cama. Com quatro ficava o quarto cheio, se havia mais sentavam-se no patamar. O que Janine ganhava numa pastelaria e como modelo nas Belas-Artes permitia-lhes à justa aguentar três semanas. Na opinião de Adô a última semana de cada mês assemelhava-se passavelmente ao pior dos romances de cordel: comiam os restos dos pastéis e sanduíches que os clientes deixavam nos pratos, e que Janine levava para casa às escondidas.  Se era Inverno viviam sem aquecimento e só se os amigos os convidavam podiam ir ao café. Quase esquelético, os fatos que tinham sido elegantes assentavam-lhe agora no corpo como se os tivesse recebido por esmola.

Essa situação durava há três anos. Adô pintava cada vez menos e, segundo a sua própria impressão, cada vez pior. Quando se encorajava a levar meia dúzia de quadros à galeria, voltando de lá sem uma única venda nem esperança dela, dançavam-lhe diante dos olhos visões de suicídio, alternativa mais atraente do que continuar assim ou acabar a dormir sob as pontes.

 

Adô desapareceu ou eu tomei outros rumos, não recordo, mas depois de não nos vermos há muito encontrámo-nos uma manhã numa padaria, ele a entrar, eu a sair. Rimo-nos do acaso, abraçámo-nos, dei um passo atrás para admirar aquele Adô metamorfoseado, gordo e próspero, vestido com o esmero antigo.

– Houve milagre!

– De facto consegui salvar-me – disse ele – Ou melhor: fui salvo pela merda. Literalmente. A merda salvou-me.

Num café a dois passos dali contou-me como ele e Janine, mesmo nos momentos de menos precisão, se tinham visto reduzidos a só comprar as entranhas dos frangos, e a sua surpresa ao notar um dia que os intestinos transparentes e finos, onde as cagalhetas se enfileiravam como contas de um rosário, possuíam uma curiosa trama e se dispunham num estranho desenho.

Foi a inspiração! Colando as tripas com cagalhetas e tudo sobre pequenas telas, colorindo-as e envernizando-as, tinha criado desse modo figurações tridimensionais de um estilo muito pessoal.

O êxito fora instantâneo. A galeria anunciava constante[1]mente novas e maiores vendas. Chegavam pedidos da Suíça, do Japão, Itália, Estados Unidos. Directores de grandes museus intrigavam para que fosse dada prioridade às suas encomendas.

Com os primeiros fundos tinha podido comprar um apartamento na Rue du Bac, onde andava agora a fazer obras, e porque era perto fomos ver, não me custando a imaginar o luxo que seria quando estivesse pronto.

Uma história assim merecia ser contada. Embora resmungando que lhe «comia» muito espaço, o redactor-chefe acabou por publicá-la com as fotografias que eu mandara a acompanhar o texto, enchendo uma página inteira.