domingo, novembro 7

Chegar aos cem

 

Será possível que o dar uma boa notícia resulte em discórdia? Pode parecer contraditório mas  acontece e, mais curioso ainda, numa ou noutra ocasião da vida dum casal ser ponto de partida para situações em que, palavra puxa palavra e o azedume a crescer, ambas as partes se dão conta de que aquilo pode acabar mal.

De modo que chegando a esse ponto de discórdia, se nenhum dos dois tem o bom senso de ceder, está criado aquele ambiente em que do amuo se passa às indirectas, dessas às  acusações, pouco importando se são verdadeiras ou falsas desde que dêem vantagem na discussão.

A Armandina e o Benjamim, ela com setenta e um festejados em Janeiro, ele não se cansando de repetir que desde oito de Julho, quando brindaram pelo seus oitenta e oito anos, a todo o momento espera que lhe aconteça algo de bom e espectacular. E porquê? É que não somente entre os chineses é o oito o número da sorte, mas o mesmo acredita gente de valor, inclusive o grande Fernando Pessoa, que não duvidava da influência do número oito no seu destino, pois estava presente em vários momentos e circunstâncias da sua vida, inclusive nas oito letras do seu nome. Como em Benjamim, aliás.

À semelhança de todos nós, nos últimos tempos a família conheceu os aborrecimentos e proibições que vieram com a pandemia, tendo-lhe sobretudo custado quando ainda não podiam ver os netos nem as duas filhas, entretanto e infelizmente divorciadas. Mas como o optimista Benjamim nunca se cansa de repetir, o tempo tudo cura, e a falar verdade nem ele nem a Armandina sentem saúdade dos ex-genros.

Duas semanas atrás a vida do casal retomara o ramerrão, mas por vezes parece que o Destino se aborrece, e acha divertido incomodar quem goza uma santa paz. Aconteceu estar o Benjamim tão entretido a ver “O preço certo” que mal deu conta de que Armandina lhe tocava no ombro, apontando qualquer coisa no jornal. Depois, ao querer saber o que era, respondeu-lhe ela trombuda e mal disposta, viu-se obrigado às pantominices do costume, mas  finalmente mostrou-lhe a página onde se lia que as mulheres em Portugal vivem cerca de dez anos mais do que os homens, e passa de três mil o número das que já fizeram cem anos.

- Isso quer dizer o quê? Tens pressa de ficar viúva?

Ela virou-lhe as costas e foi para a cozinha. Ele a hesitar se valeria a pena recordar-lhe que não era ela quem... Bufou, mas decidiu que melhor seria acalmar, a voz do cardiologista uma espada de Damocles: “As emoções, senhor Pires! Cautela com as emoções!”