quinta-feira, junho 24

Gente doutro planeta

 

Além dos confortos óbvios que oferece, a riqueza dos muito ricos, sobretudo a daqueles que a possuem há gerações, não somente lhes dá uma visão particular do mundo, mas concorre por vezes para alterar de maneira curiosa o significado das palavras que usam. Numa outra vida que paradoxalmente me parece recente e remota, estava eu em São Paulo numa festa em casa de amigos, quando um homem grisalho e de meia idade me começou a fazer o elogio da sua fazenda.

A conversa dos outros tinha mais interesse, mas apanhado pela dupla tenaz das boas-maneiras e do respeito devido aos anos do senhor, fiquei a ouvi-lo com impaciência e um sorriso de circunstância.

De vez em quando acenava o meu assentimento, e isso, juntamente com a fixidez dos meus olhos presos nos seus, por certo lhe parecia uma forma suficiente de diálogo, pois há quase uma hora me descrevia ele a beleza e vastidão da sua propriedade. Coisa oferecida pelo imperador D. Pedro a um seu avoengo - com um sorriso sublinhou o arcaísmo - em reconhecimento de grandes serviços prestados por esse maior - novo sorriso - na luta pela independência brasileira. Mais vasta que algumas provínc­ias de Portugal. Dezenas e dezenas e dezenas de quilóme­tros.

Ele próprio, segundo confessou, possuía um conhecimento imper­feito do tamanho das provínci­as do meu país, mas amigos seus tinham garantido que assim era. Embora outros pusessem o facto em dúvida. "Como português e homem de conhecimentos" eu parecia-lhe a pessoa indicada para com os próprios olhos ir "medir aquele mundo" e oferecer em seguida uma opinião irrefutável sobre se sim ou não a sua fazenda se poderia, por exemplo, comparar a Trás-os-Montes ou ao Minho.

Pareceu-me tal desaforo querer reduzir a minha querida província transmontana ao tamanho de uma fazenda brasileira que não hesitei no exagero. Tirante o Alentejo, uma antipática sucessão de estepes, disse-lhe eu, Trás-os-Montes era a mais vasta e imponente província portuguesa. Não se estendia por dezenas, mas centenas de quilómetros. Tinha grandes serras, como o Marão. Nela passava o Douro, soberano entre os rios da Península.

O senhor esboçou um gesto de desculpa, confessou-se surpreendido com a vivacidade da minha reacção e sinceramente contrafeito de que fosse tão escasso o seu conhecimento do "nosso Portugal, pátria comum".

Talvez a sua fazenda se não pudesse igualar "a essa esplendorosa província", mas a falar verdade não havia nela um, mas dois grandes rios, e uma serra tão alta e tão cheia de onças que ninguém tinha ainda ousado desbravá-la.

Foi a minha vez de ceder. O Minho, região de terras amenas e distâncias modestas, talvez se pudesse comparar a uma razoável fazenda.

- Lhe chamam o jardim de Portugal, não é?

Confirmei e ele teve um sorriso de desapreço, como se lhe desagradasse a ideia de que alguém pudesse associar o seu território com coisa tão pequena.

- Porque você não dá um pulo até lá, para ver? Fica uns dias.

Desculpei-me com o muito trabalho do jornal, mas logo ele sugeriu ir falar ao director, que noutro grupo discutia política, e exigir dele, seu íntimo, que me fosse dada uma folga.

Tive dificuldade em convencê-lo a que o não fizesse e por fim cedeu aos meus argumentos, mas o alívio de não ter de ir brincar aos agrimensores foi de pouca dura.

- Você trabalha no domingo?

Respondi que não, gracejando que a vida de jornalista, sem ser um mar de rosas, oferecia pelo menos a vantagem de se poder guardar o dia do Senhor.

- Então está resolvido - decidiu ele, contente. - Domingo você almoça lá na fazenda.

Sorri daquela ingenuidade e, a oferecer-me uma importância que não tinha puxei o fumo ao cigarro, perguntei se ele se dava conta que, mesmo de automóvel, eu levaria dois dias a fazer os seiscentos e pico quilómetros que separavam São Paulo do seu domínio. Mais os dois dias da volta. Por muito agradável que fosse o convite e honrosa a companhia, para um almoço parecia-me excessivo.

Ele encarou-me alheado, como se não tivesse ouvido, e em vez de reagir às minhas palavras chamou a esposa:

- Gabriela, chega aqui. Domingo o José vai na fazenda almoçar com a gente.

- Mas é impossível - tentei eu explicar. - Quatro dias...

A mulher encarou-me com um sorriso vazio e um desinteresse total pela minha presença e as palavras do marido, mas repetindo como um autómato:

- Que óptimo! Que óptimo!

- Então, Gabriela, você trata com o pessoal - ordenou ele. - E avisa Manuel e Georgina. José vai verificar para a gente se a fazenda realmente é tão grande como uma província lá do Portugal.

A mulher beijou-o na face com um entusiasmo de comédia e virou-nos as costas. 

Procurei chamá-lo à realidade:

- Oiça, mesmo com a melhor vontade do mundo e licença do director eu não posso gastar quatro dias...

- Que besteira é essa de quatro dias que você continua falando? Duas horas, rapaz! Eu mando o avião te pegar e ele te deixa mesmo diante da porta. Tem pista.

Assim aprendi que, usadas por um mortal de bolsa modesta ou um multimilionário, as mesmas simples palavras com que se convida alguém para almoçar, encerram mais que a diferença entre dois mundos.