domingo, outubro 20

Nótulas (13)


Começa-se com entusiasmo, no engano de que a inspiração existe, e de súbito faz-se no cérebro um inexplicável negrume, de nada adianta insistir, não há enredo para contar. Ficam as pontas soltas dos fios que vou guardando, mesmo sabendo que com eles nada tecerei.

Deixo correr o olhar, mas é mais um hábito, passatempo, não me peçam detalhes da paisagem, das margens, se há barcos no rio ou é muito o arvoredo, quantas as vinhas, porque olho sem ver, com um interesse menos que passageiro.
Rotina que comecei pouco depois de para aqui vir. Tomado o pequeno-almoço pego nos jornais e desço para o miradouro, debruço-me como se estivesse a admirar, mas de facto sem curiosidade, e dali vou  sentar-me onde fizer sombra.
Os jornais são um pretexto. Se os abro, se leio distraído um ou outro artigo, nada  retenho, porque voluntariamente ou não o pensamento se me perde em inúteis tentativas de ordenar o que permanece caótico, descobrir explicação para os altos e baixos, de com teimosia querer que haja lógica onde tudo  parece contraditório, desnorteante, absurdo.
Deveriam ser de repouso, mas são momentos cansativos, impedem-me de ver claro em mim próprio, no que me acontece, o que desejo  e o que realmente está ao meu alcance. Muito brevemente, numa ou noutra altura quase consigo o milagre de eliminar por inteiro o passado e ver-me apenas no agora, esquecido das humilhações, da crueldade minha e alheia, das horas de desespero, do terror que dá a vista do precipício.
O alívio, contudo, é de pouca dura e sem proveito, o pensamento logo me devolve para o que foi, obriga-me a remoer o que quero olvidar, parecendo que assim dá aviso de que a prosperidade que tão inesperadamente me calhou tem um preço.
Vai para três anos, mas a cena, o lugar, o momento, a pouca luz da manhã nevoenta, o ruído da campainha, o azedume do carteiro quando me estendeu o bloco para assinar o registo e a preocupação com que voltei à sala, o tamanho invulgar do envelope, o toque que por descuido dei à xícara e o café que se arramou, uma insólita buzina, tudo isso permanece vívido nos pormenores.
Céptico por temperamento, experiência, e pouco habituado a boas surpresas, limpei a mesa,  perguntando-me o que me esperava, que motivo poderiam ter Veloso, Cabrita, Delcano & Associados, advogados em Lisboa, para me remeterem aquilo.
O luxo do grosso envelope fazia contraste com o desarranjo da mesa e a modéstia da minha sala, testemunhava doutros mundos, ambientes finos, parecia emanar dele, se não ameaça uma certa altivez, como se mo tivessem enviado por engano, embora o nome e morada conferissem.
Sorri da minha medrosa desconfiança, escusando-me com outras ocasiões, trazendo à memória envelopes que, na aparência inócuos, reservavam más surpresas. Incapaz de decidir, continuava a encarar o objecto como se fosse coisa viva, desagradável, finalmente optei por mais um café e fui buscar a tesoura.