sábado, maio 25

Boas novas, más novas


De boas novas todos precisamos, pela alegria ou alívio que dão, mas também para fazerem contrapeso às que nos atormentam, tanto mais que nos dias que correm, em que muito do que parece não é, em certas ocasiões torna-se difícil afirmar com segurança se uma notícia que nos chega é boa ou má. E deixo de lado o que antigamente se chamavam boatos ou mexericos e agora à moderna dão pelo nome de fake news, quero apenas referir a dificuldade que por vezes sinto em decidir se determinada notícia é boa ou má.
Isso não somente porque certos padrões parecem mudar dum dia para o outro, mas também porque em muitos casos se me torna difícil compreender e aceitar a urgência ou o benefício da mudança. E já nem falo das complexas questões do clima ou da política das grandes potências, que essas transtornam cada vez mais o meu entendimento, como não  toco nos assuntos de economia, porque então me sinto mesmo no escuro, mas daqueles  acontecimentos de aparência corriqueira que de súbito ganham uma estranha dimensão. Pareciam esperançosas boas notícias e afinal mostram má cara.
Como se não me sobrassem motivos de desassossego, ao abrir uma revista dia atrás vi-me diante de problemas de que nem suspeitava a existência, e quase obrigado a tomar partido, quando nem por sombras imagino qual é o lado bom ou se a razão está com o lado mau.
Sabia V. que a caxemira,  durante séculos o tecido mais caro do mundo, fica hoje ao alcance de todas as bolsas, e isso se deve aos colossais rebanhos de cabras na Mongólia? E que  pela sua quantidade e voracidade as cabras estão a destruir a natureza desse longínquo país? Vai V. ter problemas de consciência e pensar na natureza da Mongólia quando for comprar um casaco ou um pulôver de caxemira? Ou egoisticamente opta pelo luxo barato e esquece as cabras?
Esse dilema bastaria, mas o artigo lembrava ainda que as centenas de milhões que há pouco nunca tinham ouvido falar da quinoa, querem agora comê-la todos os dias, fascinados que andam pela sua riqueza nutritiva, a qualidade das vitaminas, e o mistério de há milhares de anos ser o alimento básico dos quéchuas. Até aí tudo bem, não fosse o caso de que à medida que a procura foi aumentando o preço subiu, na Bolívia e no Peru os quéchuas deixaram de comer a quinoa para a poderem vender. E aí estamos nós com mais um dilema que desconhecíamos e bem dispensávamos, quando nos bastava o trigo, o centeio, o milho, a cevada, e agora nos aflige a cada colherada de quinoa que levamos à boca.

quinta-feira, maio 23

Bilhetes (22)


Foi apenas um exercício de escrita. Depois a vida passou, muito aconteceu, mudou-se o palco, mudaram os actores, as palavras ganharam outro sentido, mas aqui e ali alguém saberá interpretar.

É contigo que falo, me abro, deixo entrever boas e más horas, te mando em código sentimentos, abjurações, raivas e alegrias. É para ti que componho frases onde tudo está, e tudo se esconde, a aparência mascarada de realidade, o acontecido embrulhado em fantasia, o eu tantas vezes multiplicado que não reconheço a própria sombra e desconfio que não seja minha a voz que julgas ouvir.
Falo-te, e contudo não existo, nem sequer como me imaginas, porque a todos os momentos me refaço. Escondo e escondo-me, reapareço, invento-me, iludo-te com palavras, e elas, fazendo ricochete, transtornam a imagem que de mim formas, a do espelho em que julgas ver-me e onde nunca estou.
Falo, tu escutas. Parece realidade e é só aparência, distância, sonho, a bela ilusão do possível que nunca acontece, o poder volátil do desejo tonto. Enfio palavras como contas num rosário de orações, sem credo nem sentido, ignorando que música te farão ouvir, ou se de alguma dor sentirás alívio.
São só palavras, migalhas de mim, sacudidas com fingido descaso, mas na esperança de que, se as apanhares, te dêem a ilusão de que estivemos a falar e nos compreendemos.

segunda-feira, maio 20

Bilhetes (21)


                                                                       (Clique)
Poder, sexo, amor, ambição, derrotas, quedas, trambolhões, é de sobra o que pode complicar a existência ou torná-la fora de série. Ainda bem que a maioria das vidas segue num ramerrão de hábitos, apetites, banalidades, horas certas, obediência à lei e aos costumes. Dos que escapam à rotina só eles próprios poderão dizer como na realidade foi e se valeu a pena. Para os outros fica a imaginação.
O que segue são excerptos do conto de Jeanette Winterson All I know about Gertrud Stein, publicado na Granta em 2011, e que nessa altura li. Tem a ver com amor e paixão. Reli-o agora numa perspectiva diferente e alguma estranheza, perguntando-me o que entretanto aconteceu ao mundo ou se a idade me tira a escama dos olhos. O itálico é o do texto original.

“In 1907 a woman from San Francisco named Alice. B. Toklas arrived in Paris. She was going to meet a fellow American living there already. She was excited because she’d heard a lot about Gertrud Stein… Alice Toklas had no previous experience of love… Gertrud Stein and her brother Leo had long since left the USA to set up house in Paris in the rue de Fleurus… But Gertrud was lonely.

I do very badly without a lover. I pine, I sigh, I sleep, I dream, I set the table for two and stare in the empty chair… Sometimes I have affairs. But though I enjoy the bed, I feel angry about the fraud; the closeness without the cost. I know what the cost is: the more I love you, the more I feel alone.

On 23 May 1907 Gertrud Stein met Alice B. Toklas.
Gertrud: Fat, sexy, genial, powerful.
Alice: A tiny unicorn, nervous, clever, watchful, determined.

We were both survivors of other shipwrecks. You looked sad. I wanted to see you again.
For a while we corresponded  by email, charming each other in fonts and pixels. Did you…do you… would you like to… I wonder if…

The Stein and Toklas love affair was about sex… They talked about The Taming of the Shrew… not a poster-play for feminism.
Gertrud: A wife hangs upon her husband – that is what Shakspeare says.
Alice: But you never married.
Gertrud: I would like a wife… When al is said one is wedded to bed.
It was the begining of their love affair. 

Women used to be in charge of love – it was our hole domain, the business of our lives, to give love, to make love to mend love tot end love…
 
Alice Toklas never went back to San Francisco. They were together everyday for the next forty years… and they never stopped having sex.
Gertrud Stein liked giving Alice an orgasm – she called it ‘making a cow come out’. Nobody knows why – unless Alice made moo noises when she hit it. Gertrud said, ‘I am the best cow-giver in the world.’

I don’t think we talk about love in real terms anymore. We talk about partnership. We talk about romance. We talk about sex. We talk about divorce. I don’t think we tal about love at all.”

É um belo conto. Estes excerptos pouco dizem, dão apenas ideia de que possivelmente todo o amor é único, uma caminhada a dois, feita por vezes em solidão.