sexta-feira, março 22

Bilhetes (4)


Passados oito meses de ausência amanhã volto à minha aldeia, mas a viagem será bem diferente da que fiz em Março de 1964, depois de mais de uma década de desterro voluntário.  

Por boa sorte e muito trabalho, desde há algum tempo a vida corria-me tanto de feição que perdera o medo dos fins do mês e das ameaças do fisco, de modo que um belo dia me pude dar ao que era então verdadeiro luxo: comprar um carro. Nada de extravagâncias, porque não me está na maneira de ser, mas também porque a aprendizagem de como pode ser dura a realidade da vida me deixara  vacinado para todo o sempre.
Foi assim que uma manhã, num stand, apontei o Fiat 1500 de quatro portas que desde algum tempo trazia de olho, paguei de contado, umas semanas  depois, dando voltas pelas ruas de Amesterdão, via finalmente realizado o sonho que acalentava desde que, ao redor dos sete ou oito anos o senhor Artur, nosso vizinho e chofer da Ferreirinha, a histórica firma de Vinho do Porto, me sentara a segurar o volante do seu camião, mostrando como se apertava a corneta do cláxon.
“Ao menino e ao borracho bota Deus a mão por baixo”, mas o provérbio de certeza é também válido para ignorantes e desastrados, pois doutro modo não se explica que com a carta tirada havia pouco, e coisa de mês e meio desde que tinha comprado o carro, metesse nele a mulher, as filhas - então com dois, cinco,  sete anos - e bagagem para dois meses de férias, com uma vaga ideia das distâncias e do tempo preciso, levando por única bússola os mapas Michelin.
No que respeita hotéis esperava que os houvesse nos lugares onde decidíssemos pernoitar, o mesmo também de bombas de gasolina e garagens, se bem que a probabilidade de avarias num carro acabado de estrear me parecesse  nula.
Mais de meio século passado, dos episódios dessa viagem há um ou outro que de vez em quando vem à tona, sobretudo por serem abissais as diferenças de conforto e segurança.
Nos quinhentos quilómetros de Amesterdão a Paris, que hoje faço em pouco mais de quatro horas, gastámos então dez, e porque de auto-estradas nada havia na Europa fora as que Hitler construíra na Alemanha, custou-nos quatro dias para atravessar a França, com o bónus de passarmos por uma infinidade de pitorescas vilas, aldeias, lugarejos,  e o susto de em certas curvas lermos em letras gordas o aviso de que ali tinham morrido sete pessoas, mais além ia a conta em onze, que desde o começo do ano somavam já vinte e dois os acidentes, ou que os quilómetros seguintes eram zona onde se tinham dado trágicos desastres.
Sem compreender o que era aquele aparato de me ultrapassarem com sirenes, luzes a piscar e grandes gestos, em duas ocasiões tive de pagar multa aos gendarmes que, postados numa curva, me tinham visto passar sobre a faixa contínua.
A tortuosa travessia dos Pirenéus tenho-a bem presente pela estreiteza da estrada, a infindável sucessão de curvas fechadas, os muitos buracos no asfalto, e o incrível número de camiões caídos nas bermas, alguns há tanto tempo abandonados que a ferrugem lhes tinha comido a pintura.
Em Espanha, algures depois de termos passado Burgos, espantou-nos um insólito povoado com três ou quatro casas, só depois nos dando conta que a gente que ali vivia em extrema pobreza tinha por moradia as muitas cavernas escavadas na encosta.
Na tarde desse mesmo dia esperava-nos ainda uma surpresa mais estranha, quando fomos à procura de água numa povoação a alguma distância da estrada. As ruas eram poucas, mas em nenhuma vimos gente, cão vadio, coisa que parecesse café ou taberna. De fonte, fontenário ou nascente de água, nada, o que em desespero me levou a bater a uma porta. Silêncio total. O mesmo na seguinte e nas duas ou três  que ainda tentei.
Talvez fosse por ser hora de siesta, mas causou-nos aquilo um tão pesado  sentimento de hostilidade e mau agouro que as crianças deixaram de se queixar.
Um feliz acaso fez-nos descobrir Baltanás, onde nos mataram a sede, deram de comer, de dormir, a gente do albergue mostrou-se tão simpática e acolhedora que aí teríamos demorado não fosse a febre em que eu ia de rever a minha gente e a minha terra.

Fazia o possível por me manter calmo, mas à medida que nos aproximávamos da fronteira crescia em mim o desconforto, censurava-me de ter cedido a um ímpeto, não levando em conta o que para a minha mulher e para as filhas ia ser mais que um choque cultural, talvez mesmo um abalo demasiado forte e de consequências imprevisíveis, pois nada as preparava para a grande mudança  que desde a paisagem aos costumes, aos hábitos, às formas de convivência, à comida, e outra sensibilidade, em todos os aspectos as esperava.
O meu nervosismo ia aumentando, a vista do primeiro painel a indicar a direcção de Vilar Formoso foi um choque desagradável, de mau agouro o tom prepotente dos guardas-fiscais a revistarem com demora a bagagem.
Pior, e ainda mais autoritário, o cavalheiro da PIDE que sentado a uma mesa, cigarro pendurado nos beiços, folheando distraidamente os passaportes, me interrogava com minúcia e sem me encarar, tamborilando a espaços, como se as respostas que lhe dava o irritassem e pusessem à prova a sua paciência.
A minha mulher assistia à cena com surpresa e alguma preocupação, pois embora estivesse ao corrente das diferenças entre as instituições do seu país e do meu, nada a preparara para o confronto com a realidade. Por sua vez as crianças, sensíveis à estranheza do lugar e ao modo hostil do funcionário, agarravam-se  intuitivamente a nós em busca de protecção.
Finalmente, ainda sem me encarar, o pide atirou-me os passaportes, e com um gesto desdenhoso, sacudindo o braço como se nos enxotasse, apontou a saída.