segunda-feira, setembro 30

Solidão


Oiço esta manhã na rádio que, segundo uma estatística, um milhão de holandeses confessa sofrer de solidão.
Como é possível, pergunto eu, se só vejo gente agarrada ao telemóvel, às vezes dois, em comunicação constante, a mostrar a pressa de quem vive, não apenas uma vida, mas três ou quatro? Será teatro? Será que fingindo conversar e rir com outros, o que vemos na rua são conversas de fala-só?
Se assim é vai mal a coisa, mas talvez não seja: na semana passada uma outra estatística informava que 90% dos mesmos holandeses se consideram felizes. 
Compreenda quem puder.

sábado, setembro 28

Remédios

Nunca fui bom na matéria, mas em vez de ganhar em senso e prudência, cada vez tenho mais dificuldade a fazer de modo que não se me leia na cara o que vai no coração. Por isso grande é o meu contentamento cada vez que, numa situação que o pede, consigo o facies do clássico jogador de póquer.
Assim é que semanas atrás me vi defronte do cardiologista que anualmente controla o funcionamento da máquina, e ele, explicando os porquês, sugeriu uma mudança de comprimidos.
Ouvi os argumentos, mas, curioso de saber mais e presto na investigação, fui-me ao Google a estudar os prós e contras da nova mezinha. O remédio fazia bem assim e assado, mas aumentava também em 36% o risco de ataque cardíaco. Franzi o sobrolho.
Visitei o meu médico pessoal e ele, que me trata há dezenas de anos e conhece bem, mostrou-se  franco à quase sempre contundente maneira holandesa
- Num homem de cinquenta seria um risco, mas na tua idade poderás viver dois ou três anos menos, mas com melhor qualidade de vida.
Consegui o fácies correspondente, despedimo-nos, perguntei-me que melhor qualidade de vida posso desejar do que esta que tenho, em que só os remédios me assustam?

quinta-feira, setembro 26

"Os Idiotas"

aqui se falou dele, mas é boa nova que também outros atentam e apreciam:
in TIME OUT
(Clique)

quarta-feira, setembro 25

Agendas

Vivi boa parte da minha vida sem agenda, assim a modos de querer provar que, mesmo nas alturas de muita agitação e pressa, a memória supria as necessidades.
Mas a vida complica-se, às obrigações da família e dos amigos juntam-se as visitas ao médico, as análises aqui, os controles acolá, o dentista, o fisco, a garagem, o canalizador…
Do desleixo antigo mudei para um quase maníaco cuidado e, temendo as faltas de pontualidade, logo em fins de Agosto ando de olho nas livrarias à espera de agendas.
Já tenho a do ano que vem. Preenchi as datas dos aniversários e das obrigações ainda remotas, como uma ecografia às onze da manhã do dia 9 do futuro Setembro, a consulta do cardiologista uma hora depois, e assim por diante.
Esta tarde, olhando as páginas, ocorreu-me a falácia do meu cuidado: é desafiar o Altíssimo esperar d'Ele certezas sem lhe conhecer a agenda.



terça-feira, setembro 24

"O romance? Morreu."

Desde que comecei a ler com algum entendimento chama-me a atenção que, de longe a longe, às vezes em grupo, noutras com a forte certeza de quem viu a luz, aparece uma rapaziada a anunciar a morte do romance, ou descartando como ninharia tudo o que se escreveu antes do falecimento.
Formam cliques, agrupam-se em escolas, reúnem-se em capelas, criam modas, depois tudo aquilo passa, fenece, e o romance continua pacatamente o seu caminho, num futuro próximo  não se lhe descortina o enterro.
É assim que, em mais de uma altura, me tenho perguntado donde será que lhes vem a birra. Saberão o que o resto do mundo desconhece? Será gente com dons de vidência?  
Ao longo de gerações tenho visto como surgem a refilar, para logo depois, tal morrão de candeia, deitarem um fuminho e sumirem em inglório anonimato. Por isso mais de uma vez me tem ocorrido que, empurrados pela universidade, a família, os compinchas, ou então, com aquele ânsia tão nossa, tão portuguesa, de "fazer como se faz lá fora", ressentem uma urgência de dar nas vistas.
Mas darão? Sabe você quem é o rapaz que recentemente anunciou a morte do romance? Ou o outro que pregou o mesmo há dois anos? Ou o avô desses, que em Maio de 68 jurava que a salvação  da literatura era o Nouveau Roman?

segunda-feira, setembro 23

Ostende


Como se finalmente desse conta de si, parou junto de um S.O.S da E40, recordando o instante em que deixara o prédio da Avenue Louise, a porta de ferro trabalhado a fechar-se lentamente. Revê o momento em que ela, abrindo a gaveta da secretária, assina o cheque e lhe entrega as chaves do carro, acrescentando que pode ficar com ele, os documentos estam no porta-luvas.
Os guarda-costas, indiferentes, imóveis nos cadeirões junto da parede, olhos presos na imitação de lume a bruxulear na lareira eléctrica.
- Se concordas, resolve-se assim – tinha ela dito, hesitante, como se esperasse a negativa.
Sem responder, mal a encarando, agarrou as chaves, meteu o cheque no bolso,  caminhou para a porta, tenso, sabendo-se liquidado.
Desceu a avenida, virou para a Place de Brouckère, seguiu o túnel, depois a Rue de l'Égalité, e num impulso, vendo um painel da E 40, metera para Ostende.
Deu conta do perfume quando travou brusco, sem se perguntar o que o levava a parar.
Seis anos antes. A mesma sala. Certa de impor ao novato a sua vontade.
- Morde.
E ele obedece, aceita, será carrasco e escravo, a sua existência um anúncio de perdição, o abismo cada vez mais negro, cada vez mais fundo. Algoz a brincar, escravo a sério.
Os gendarmes param as motas junto do S.O.S. Não, não aconteceu nada, parou porque quer telefonar. Acena, vê-os seguir.
O perfume é tão intenso como se, o que ela gostava de fazer, estivesse ali nua, deitada no banco traseiro.
Na autoestrada conduz em transe, atravessa a cidade atentando apenas nos semáforos. De súbito vira para o porto, sem saber que mão o guia para o molhe dos contentores.
Os seguranças ouvem o motor, descrentes de ver que o carro atira com a barreira e, acelerando, desaparece no mar.

sábado, setembro 21

Noutra vida?


Noutra vida? Noutra era? Em lugar sem nome, tempo sem história? Pesadelo? Visita ao Purgatório? Revivo a cena, a hora da tarde, a ventania a sarilhar poeira na rua sem calçada, as casas de pedra solta, uma ou outra coberta do barro amarelado que pertence às aldeias de Castela.
Longe demais para distinguir se é homem ou mulher, passa um vulto e logo depois outro, um terceiro, curvado sob um molho de galhos, os braços erguidos a segurar o fardo. Lentas, como de enterro, um sino badala pancadas que não são de relógio a dar horas nem das Trindades, porque o sol ainda vai alto.
Não sei onde estou, quem sou, porque me vejo ali, e contudo nada me surpreende ou transtorna, sinto minha a vestimenta grossa, pesada, de feitura antiga, os tamancos, o gorro de lã, as mãos calejadas.
Ignoro o que me trouxe, donde venho, porque paro defronte daquela casa de paredes toscas, janelas estreitas, um fumo de lareira a subir na telha-vã.
Estaco e aguardo, como se mo ordenassem, oiço o rangido, vejo que uma das janelas se abre, puxada por mão invisível.
Demora a que um vulto de mulher se mostre, anciã de cabelo revolto, olhos a sair das órbitas, o rosto uma estampa de desespero e fúria, os lábios torcidos num esgar. Coberta do que parece um sambenito de pano grosseiro, debruça-se e aponta-me o braço descarnado, ruge palavras guturais que me trespassam como lâminas, mandamento em língua estranha:
- Diz à minha filha que vou morrer!
E de repente, como se tivesse caído num alçapão, some da janela. Petrificado, nada reconheço no lugar nem no tempo. Irregular, espaçado, o tanger do sino vai e vem, só agora dou conta que os vultos que apercebi repassam numa monotonia de figuras de carrossel.
Que poder traduziu o recado para que eu o compreendesse? Para que fui chamado? Terá sido desnorteio ou sonho em que me perdi, laço que me prende à estranha e a tão assombrado lugar? Delirei? Iludo-me de viajar no tempo, acorrentado a outro eu?

Actor me criei



Logo a desacertar, actor me criei, modo de fugir ao que para mim avançava, corpos, rostos fechados, ameaçadores, prontos a esmagar. Dois palmos se tanto, sofrido de medo e já certo que vida era guerra, o teatro um escape, saber-me de poucas forças um revés.
Meia dúzia de passos o caminho andado, léguas pela frente, anos, eternidades. No sangue a intuição de perda, vinda do mais escuro do tempo, sabe Deus que mágoas dos que passaram sem deixar nome ou pegada, iguais aos bichos, como eles apodrecendo em campa rasa, lembrados por um jeito ou remoque, pronto esquecidos na segunda geração.
Silhuetas apenas, desfilam no contraluz, de espessura e aspecto têm o que lhes empresto na fantasia, e um pouco, talvez, do que guardei por ter ouvido, desde o começo a querer resgatá-los do esquecimento.
Mas os outros? Quem são? Donde vêm os que sem hora nem aviso me assaltam e molestam? Que razões têm, que as não descubro? A alguns deles nem sequer conheço, ou sim, mas provavelmente são os que enterrei fundo no esquecimento, a vala comum dos amores traídos, das amizades findas, das derrotas, traições e ignomínias a que o viver obriga, mesmo quando a decência é o norte.

sexta-feira, setembro 20

Sextante

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As marés da água são regulares, as da vida não têm hora, mudam sem prenúncio, ao gosto do que chamamos os poderes superiores ou de misteriosa roleta.
Desatraco a barca com um genuíno sentimento de surpresa, pois pelas contas que outros tinham feito estava ela menos destinada a retomar a navegação, do que a apodrecer ingloriamente, minada pelo caruncho que ataca tudo o que envelhece.
Vai de manso, porque o recomeço exige precaução, e embora não se trate aqui de evitar escolhos e recifes, o passado recente do arrais convida a pensar duas vezes, talvez três, tomar fôlego antes de se sentir cheio de razão para bradar e fustigar.
Depois dos grandes sustos tudo se mostra muito relativo, perde a urgência, diminui de importância. Se então alguma coisa aumenta é a vontade de fazer um esforçozito extra para compreender o semelhante, aceitar-lhe as manias e desculpar-lhe as certezas.
Vamos lá desprender os cabos, içar as velas, fingir que uma tripulação espera as minhas ordens. Numa mão o sextante, a outra presa ao leme, tomo ares de quem escolheu a rota e sabe para onde vai. Só ares. Que em incerteza do caminho nenhum timoneiro me leva a palma.