segunda-feira, março 20

Laços

 

Agradável coisa, esta que ultimamente me tem acontecido, pois me estão a sobrar amigos, relações, os conhecidos e até os parentes. Tenho uma vaga ideia da causa desse desmesurado e recente carinho, mas nem por isso deixa de me maravilhar a descoberta de que haja tanta gente que, antes de testemunhá-la, mantenha a amizade e o parentesco numa espécie de longo banho-maria.

Seja como for, de momento é amigos p'ra cá, parentes p'ra lá. Uns brincaram comigo na infância, outros são do liceu, da tropa, do tempo em que morei na Praça da Alegria, em Lisboa. Há um que me conhece da boémia de Berlim, onde nunca estive. Pouco falta a outros para que, esquecidos da idade, jurem que andaram comigo ao colo quando gatinhava no Monte dos Judeus, em Gaia.

Aquele recebeu em tempos uma carta minha, e recorda-a laboriosamente, aproveitando a ocasião para mencionar o erro ortográfico que lá encontrou. Uma outra pede o endereço, para mandar o poema que em 1948 lhe recomendei e que ela guardou na agenda desse ano.

De parentes é também um nunca mais acabar. Primos em quinto, sexto grau, que nos longes do Mato Grosso, da Venezuela, de New Jersey e Sausalito, subitamente se agarram à existência deste familiar, desculpando-se da ignorância do sangue que nos une.

Vale-me a pachorra. Franzo o sobrolho, mas na verdade divirto-me de que gente a quem por urbanidade se dão dois dedos de conversa, familiares e vagos conhecidos, tão inesperadamente transbordem de simpatia.

 

 

domingo, março 19

Com os holandeses


 

No escuro da nossa fantasia

 

De amor sabem falar os poetas. Nós, o comum, desajeitados e menos sensíveis, dizemos alguma coisa com os olhos, os gestos, mas sempre a pensar que ficamos aquém, perdidos nos temores que imaginamos. Somos bem melhores no fingimento.

Vem. Deita-te. Apaga a luz. Cerra os olhos. Não fales. Imagina a quem queres que empreste as palavras que te vou sussurrar.

Lembras-te da esplanada, aquela tarde, o acaso do nosso encontro, quando ao sentar-te tropeçaste e eu te segurei para que não caísses? Depois combinámos jantar, ambos inocentes, descuidados, sorrindo de tudo, adivinhando os subentendidos, felizes com aquela alegria ingénua de crianças. E o primeiro beijo, lembras-te?

Não respondas. Ouve. Ainda não era amor, só a excitação do início, o aperceber da descoberta. A iminência do destino que, soldando-nos, de dois faria um.

O que a seguir aconteceu é vivência de poucos, romance de paixão e loucuras, do espanto das confissões, da partilha dos segredos que envergonhavam e agora nos unem. A suavidade das mãos que se procuram quando nos deitamos. A harmonia dos sorrisos trocados. Certos olhares. O que os dedos aprenderam a soletrar na pele. A ternura dos momentos em que, compreendendo e perdoando, celebramos o reencontro.

É amor, sim, minha querida. Amor que se alimenta de pequeninas e grandes coisas, destes sussurros, dos beijos na escuridão da nossa fantasia, do modo como nos encaramos quando o dia começa.

Aquieta-te. Espera que eu saia e oiças fechar a porta.

 

 

sábado, março 18

Perto do fim

Nasceste entre montes, males e misérias, temeroso da escuridão. Aos poucos, sem saber como nem sequer porquê, foste afastando as sombras, descobriste a beleza e a grandeza que elas escondiam.

Quiseste mais, procuraste sem encontrar. Ignorante de que não se voa sem asas, confiaste que ventos de boa fortuna soprariam na direcção do sonho, um longe de beleza, justiça e paz.

Seguiste uma rota de fraguedos, remoinhos, despenhadeiros, erros de bússola, resistindo a ciclones contrários, sofrendo maleitas e malefícios. Jornada para um horizonte de miragem.

Foste, eles ficaram. Mas tem cautela, mesmo perto do fim não deixes que te prendam.