domingo, julho 14

Viagem sem mapa

 

Fazer planos seria vaidade e um bocadinho ridículo, pois o que se aceita até tarde, digamos aí por volta dos oitenta, passada essa étapa é muito o que entra no domínio do nebuloso. Todavia, acontece por vezes que o inesperado, além da qualidade que se lhe atribui, ganha facetas que a uns parecerão bizarramente esperançosas, enquanto outros – entre esses me incluo – tendem para suspeitar que o acaso não existe, em tudo julgam sentir a presença de um espírito, não necessariamente maligno, mas dado a provocar estranhas reviravoltas.

Evitarei o chocho lugar-comum de que a minha vida dava um romance, pois todas o podem dar, basta que quem o escrever possua arte suficiente. O que acontece é que, “revisitando” uma e outra das peripécias que vivi ou testemunhei, me vejo a braços com o obstáculo de conciliar a recordação e o sentimento de incredulidade, como se o ficcionista em mim tente fazer passar por real, o que em demasia sei que foi imaginado. E vice-versa. Todavia ele, dispondo de qualidades fora do meu alcance, além de tão superiormente refinadas que Houdini cai do pedestal, estraga-me muitas horas que, fosse eu católico praticante, iria passar de joelhos no confessionário, pedindo a remissão dos meus pecados.

Julgando-se com mais apurado sentido do real, um ou outro a quem menciono a minha confusão aconselha-me a não fazer caso, porque dando tempo ao tempo tudo passa. E bem pode ser que a razão esteja do seu lado, mas eu não me posso dar o luxo de olhar para os meses do calendário, vivo atento aos ponteiros do relógio, perguntando-me quando chegará o instante a que os poetas chamam “o último suspiro”, e os escribas de obituários se aborrecem e rogam pragas, folheando jornais à procura de louvores.