domingo, julho 7

Os lábios são um perigo


É exagero, e dos grandes, mas a despeito do seu modesto metro e sessenta e dois, tudo para o Adalberto parece existir, ou acontecer, em função da extrema capacidade que possui de aumentar, ver em grande, nada ou pouco referir sem que deite mão a superlativos.

Há assim ocasiões em que, arrastado pelo entusiasmo, esquece que nem todos têm paciência ou apreciam ouvir tanto exagero, resultando daí uma ou outra desavença, com a costumeira troca de remoques e subentendidos. Mas é tudo entre amigos, a arrelia logo passa, ele próprio encolheu os ombros quando descobriu que lhe tinham mudado a alcunha de “Lupa” para “Telescópio”.

Contudo, tempos atrás, a amizade que vai em três décadas os une, esteve em risco de chegar ao fim. Aconteceu isso na noite em que ouviram o Adalberto anunciar que, com força de vontade e paciência de santo, tinha finalmente aprendido o suficiente da técnica da leitura labial, para ali no café, ou na rua até certa distância, compreender o que as pessoas dizem.

A primeira reacção foi de gargalhada, mas ele não levou a mal, mostrou-se cordato, explicou que era uma aprendizagem difícil, demorada, nada do tipo de procurar na internet e o Google dar uma ajudinha.

Fiel ao princípio de ver para crer – daí a alcunha de “São Tomé” – o Azevedo propôs que se fizesse uma experiência: ele e o Camilo iam encostar-se ao balcão, conversavam um bocado virados para o “Telescópio”, e assim se tirava a prova dos nove dele ser de facto capaz de ler os lábios à distância.

Contam os que assistiram, que só visto se acredita o banzé em que aquilo deu, e quantos braços foram precisos para segurar o “Telescópio”, que dizia ter “lido” se já saberia que tinha galhos, os acusados a jurar que só tinham dito que no dia-a-dia tudo são alhos e bugalhos.

 

quarta-feira, julho 3

Vem então a foice ou a suástica

 

"O que está em causa é suspeitar que Ronaldo pode ser a mais recente defesa de uma das múltiplas variantes do pensamento de Roland Barthes e o que me apercebo, no caso deste específico jogador, é da exemplar construção de um mito que, como todos os mitos, heróis ou heróis mitológicos, resulta da frustração que se encontra na ausência de Resposta, da falha (Barthes, o meu querido sábio, chama-lhe manque) de um elemento agregador que possibilite a coesão de um povo, da urgência, tantas vezes inconsciente, de local de partilha, um lugar-comum que possibilite a resposta unânime do colectivo ao desconhecido, ao inseguro, à treva e à sensação de incompletude vivida no presente.

Ronaldo é assim a matéria-prima que enforma o mito encarado, barthianamente, como contraponto a uma falha, a uma ausência colectiva de respostas e a sua transformação em herói divino - já existe uma velhinha que afirma ter largado as muletas, voltando miraculosamente a andar sem apoio, quando caminhava para depositar flores aos pés da estátua do futebolista - é quase imediata porque contém as qualidades essenciais aos heróis mitológicos: é consensual, é grupal, pode ser mesmo societal, é comum, é agregador, unificador, é passível de se tornar símbolo - sobretudo inconsciente -, de um povo que teme a sua visível desconstrução e que tem urgência de se edificar do nada, é identificador, é simples, é reconhecido como o mais básico ideal de honestidade pura com rastos de uma ingenuidade primeva, é a projecção estável de uma comunidade em desequilíbrio, é a Resposta clara a uma falha sentida trágica e sem solução pela colectividade, sendo portanto capaz de se erguer como projecção mitificada de um povo.

Quando todos pensam a mesma coisa, é porque ninguém pensa grande coisa ou porque a coisa pensada foi tornada divindade e como todos os deuses, a coisa assim pensada é moldada com o barro dos que a pensam." Aqui